quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

O RETORNO DE ABIR ARIEVILO PARA CASA

 


Em uma de suas viagens pelos rincões do Estado do Pará, através do Sistema de Organização Modular de Ensino – SOME, política pública que atende grande parte da população interiorana paraense, sendo uma alternativa dos alunos e alunas do ensino médio que moram distante da capital, de não interromperem os estudos ainda no primeiro grau (atual ensino fundamental), uma vez que os professores do SOME se deslocavam e ainda se deslocam até as comunidades mais distantes dos olhares urbanos, e garantem o suporte pedagógico e a continuidade desses alunos até o fim do ensino médio, o professor Abir Arievilo procurou sempre se adequar à realidade de cada localidade por onde tem desenvolvido suas práticas educativas. E, se acham que o respeito à diversidade cultural, às opiniões contrárias, aos costumes e falares locais, se aprende primeiramente no ambiente escolar, tenho que dizer que precisam conhecer realmente o professor Abir Arievilo, pois a sua trajetória não poderia jamais ter êxito, se o começo da escrita de sua caminhada não tivesse como origem o seu lar, o lar dos seus pais, da sua família de sangue. Foi lá que ele aprendeu os primeiros passos de como se tornar um cidadão na essência da palavra; foi lá que ele aprendeu que o homem não pode viver isolado do convívio social; que ele é um ser social por excelência; e que só existe segurança se todos os seguimentos da sociedade tiverem emprego digno que produza vida digna, e que, pelos seus resultados, pudessem combater a violência em todas as suas formas, alimentada grandemente, pela miséria social.


Por isso, caros leitores, o professor Abir Arievilo sempre soube entrar e sair. Quero dizer que ele, em todos os lugares por onde andou, sempre soube respeitar a cultura local e os costumes locais, inclusive trazendo toda essa bagagem pra dentro da sala de aula. Isso mesmo. Quantos e quantos projetos de intervenção ele vivenciou nesses anos de estrada. Projetos que mexiam não só com alunos e alunas, professores e equipe técnica da escola, mas com toda a comunidade: danças folclóricas, tradicionais, aulas com acompanhamento musical de voz e violão abordando temas sociais significativos com o intuito de levar tanto aluno como aluna a refletir sobre o seu papel diante  do mundo, da sociedade, ou da sua própria comunidade. E em muitas localidades, o professor conseguiu resgatar com seus alunos as memórias do lugar, uma contribuição ímpar para a história do povo paraense. Creio que muitos de nossos caros leitores já ouviram falar de um projeto de intervenção através da história oral ou histórias de memória. Esse projeto tem a assinatura e iniciativa de professores do SOME. E tudo começou com alguns professores de História que descobriram a necessidade de resgatar as memórias das comunidades dos polos por onde passavam. Viram que as pessoas não conheciam as origens de seus antepassados, que as memórias de suas comunidades haviam sido apagadas, pois não sabiam dizer como tudo começou, quem foram os primeiros habitantes, de onde vieram, em que década, seu crescimento, como surgiram as primeiras moradias, o comércio, as escolas, etc., etc., etc. E saibam que este projeto foi muito importante para os alunos e para a própria comunidade, pois, a partir de um plano de atividades pedagógicas organizado por professores do modular, com entrevistas a moradores e, principalmente, daqueles mais antigos, com anotações de informações, gravações de áudio, coleta de dados, foi possível fazer o resgate de muita coisa que contribuiu para o registro da identidade local, a sua certidão de nascimento. E o professor Abir Arievilo fez parte desse processo todo. Isso mesmo, esse professor tem muita história pra contar.


Mas nem tudo são flores na vida de um professor, seja do SOME ou do regular. Abir, para quem não sabe, foi feito de carne e ossos, sangue, coração, razão e emoção. Às vezes, mais emoção; às vezes, mais razão. Assim é o ser humano, perfeito na sua imperfeição. Numa determinada localidade, o dito professor ficou chateado com tanto feriado que tinham. Tudo isso em razão dos padrões religiosos que a igreja milenar impunha para os comunitários, fazendo com que, tantas datas comemorativas de santos e santas – costume trazido pelos portugueses quando da colonização do Brasil – resvalassem em feriados municipais. Mas não tem como ninguém se espantar, nós estamos no Brasil, não é? No país onde toda semana tem um feriado pra se comemorar. E Isso significava que o comércio poderia não funcionar naquela data; e, assim, da mesma forma, os órgãos públicos municipais e, consequentemente, as escolas. Epa! As escolas? Sim, e por que não? Afinal, era feriado de santo. As aulas se recuperam depois.


E, para o professor do SOME, qual era o problema com os feriados em dias de semana? Simplesmente, não haveria aula e, portanto, o calendário letivo ficaria atrasado, dificultando o complemento da disciplina dentro da carga horária estabelecida pelo calendário. O professor Abir Arievilo estava cumprindo o terceiro módulo no município de Canaã dos Carajás – no sudeste paraense que, no ano de 2022, completou vinte e sete anos de emancipação do município – referente ao segundo semestre do ano de 2001 e, diante do problema que se apresentava, percebeu que as duas últimas semanas seriam sacrificadas, com prejuízo para ele e seus alunos. Para um professor que se dedica ao seu ofício, não poder terminar sua proposta pedagógica ou deixá-la incompleta, é como implodir em seu peito a bomba de Hiroshima ou queimar-lhe o livro preferido de cabeceira. Vendo por esse lado, é fácil constatar que Abir Arievilo não aceitava tal calendário municipal imposto pelas instituições que ditavam padrões sociais à comunidade, como as Igrejas tradicionais do mundo ocidental. Mas não adiantava reclamar. Feriado era feriado. E nem a prefeitura, nem a igreja milenar se importavam se professores e alunos teriam o calendário prejudicado, ou se as aulas seriam adiadas. O que importava era não deixar de cumprir as festividades nas datas comemorativas referentes aos santos e santas, padroeiros e padroeiras da comunidade, quer seja com missa, procissão, fogos de artifícios, comidas típicas e arraial na praça principal. Abir sabia que, parte do conteúdo e planejamento das aulas, não seriam concluídos do modo como ele achava. Logo, se viu obrigado a sair antes do município e botar o pé na estrada.


O professor arrumou todas as suas coisas, colocou no carro e pegou a estrada de volta para casa. Como tinha chovido bastante pela madrugada, o ramal de quase mil e trezentos quilômetros estava bastante danificado, e, por isso, Abir encontrou muitas dificuldades para percorrê-lo, pois havia um lamaçal danado á sua frente e muitas poças d’águas que não dava para escolher o melhor caminho por onde passar. E mesmo as estradas e vicinais estavam com o mesmo problema: lama, buracos, poças d’água, estrada escorregadia. Enquanto o professor olhava pelo retrovisor do seu carro – um Gol, modelo popular, um herói nacional que tentava sobreviver em meio ao desenvolvimento tecnológico que chegava, e à dureza daquela região – atento a tudo, percebeu que a viagem não seria fácil. Não, não seria nada fácil.


Aquele tinha sido o seu último dia de aula pelo sistema modular em Canaã dos Carajás, e o professor estava voltando pra casa de “malas e cuias”, como diz o ditado popular. Carregava de tudo, desde panelas, frigideiras, fogão elétrico, até os livros necessários utilizados nas atividades pedagógicas, já que na casa dos professores não tinha o básico de eletrodomésticos para que pudesse sobreviver.


E isso só iria piorar, pois, a partir do ano de 2003, com o fim do vínculo de compromisso por meio de convênio entre a SEDUC e as prefeituras municipais onde funcionava o SOME, os professores que chegavam nessas localidades passavam por muitos apertos como a casa pra morar, alimentação, e, em muitas ocasiões, tinham que bancar o seu sustento do próprio bolso, já que o convênio com a SEDUC passou a ser apenas um acordo verbal, sem escritura pública, sem assinatura registrada em cartório, sem um compromisso formal que garantisse o bem estar dos trabalhadores da educação pública quando se deslocassem para dar aulas nesses municípios.


Ao mesmo tempo em que o professor pensava nas dificuldades encontradas quando chegavam a certas localidades, não tirava os olhos da estrada, pois sabia que qualquer deslize poderia lhe custar muito caro. O carro sacolejava bastante, parecia que estava andando por cima de pedregulhos. Além disso, a chuva que havia caído deixou a terra barrenta, exposta, enlameada e muito lisa, o que não seria difícil de provocar algum acidente. Por isso, o professor estava atento a tudo, de olho pra que o carro não deslizasse pra alguma ribanceira à beira da estrada.


Depois de ter percorrido 400 quilômetros, ao aproximar-se de uma ponte, seu semblante ficou visivelmente pálido e contrariado, pois bem à sua frente havia uma carreta atravessada que ocupava toda a largura da ponte, de modo que não dava para atravessar nem pelo lado direito, nem pelo esquerdo. Abir Arievilo imaginou todo o percurso que teria que fazer novamente, se tivesse de voltar e procurar outra estrada., uma vez que, por ali, jamais passaria. Não havia jeito. Teve que ir à procura de outro trecho, outra vicinal por onde pudesse continuar sua viagem. Deu ré no carro e percorreu alguns quilômetros até que, finalmente, encontrou um desvio por onde poderia prosseguir viagem, uma viagem que demoraria um pouquinho mais para chegar ao seu destino, uma vez que teria que percorrer cerca de Duzentos e trinta e cinco quilômetros a mais. Essas experiências lembram-me até a rodovia Transamazônica em época de chuva, especialmente nos meses de janeiro, fevereiro e março. Ah, ninguém conseguia se manter de pé naquela rodovia de chão avermelhado e escorregadio como sabão. E, pra quem não sabe, fique sabendo agora que, o professor do SOME, andava por toda essa Transamazônica, indomável e selvagem Transamazônica, percorrendo todos os municípios, desde Altamira, São Félix do Xingu, Brasil Novo, Vitória do Xingu, Medicilândia, Uruará, Senador José Porfírio, Anapu, Pacajá, e assim ia até alcançar Marabá, Curionópolis, Parauapebas e tantos outros municípios. Quem nunca ficou na estrada, com carro emperrado, pneu furado ou atolado? Sim, sim. Acham que tudo era um mar de rosas? Que o professor era um agente turístico? Que vivia passeando de graça de um lugar pra outro do Pará? Vida de professor do SOME não era mole não, mas o professor Abir Arievilo - posso garantir a vocês - não trocaria isso por nada e faria tudo outra vez. Não só ele, mas muitos outros professores que, hoje, estão aposentados, também fariam tudo de novo.


Enquanto Abir dirigia cuidadosamente na estrada, percebeu um fluxo intenso, mas lento, de carros que passavam por um terreno desconhecido para o professor. Era um terreno era acidentado e molhado, mas muitos motoristas iam por ali, na tentativa de atalhar o caminho e chegar mais rápido aos seus destinos. E pra piorar a situação, ainda havia carretas pesadíssimas circulando naquele trecho, empatando a passagem dos carros menores. Como não podia pular por cima das carretas, nem voar, o professor Abir procurou manter-se calmo, pois não queria passar por nenhum acidente, depois de ter sofrido tanto para chegar até ali. Ele estava ciente do que estava acontecendo, do tempo ruim, da chuva que havia caído e, cansado como estava... Cansado não, esgotado, só queria chegar à sua casa, mesmo que fosse lá pela madrugada, abraçar sua esposa e filha, tomar um gostoso banho, mudar aquelas roupas, colocar um talco Barla nos pés, um Herbíssimo nas axilas, deitar em sua aconchegante cama, ligar o ventilador turbo na velocidade máxima, puxar o lençol pra cima de si, se embrulhar dos pés á cabeça e, finalmente, dormir como uma pedra até duas da tarde do dia seguinte.


Sempre com o rádio ligado para descontrair, ouvia música com fita cassete, em seu som de última linha. É, pessoal, última geração para quem gosta de uma boa música. O professor era apaixonado pelo estilo musical da música popular brasileira, mas, de tanto ouvi-la, vez por outra, procurava revezar a MPB com outros estilos musicais. Aliás, o professor ainda curte muito MPB, principalmente em disco de vinil, aquele modelo original que só colecionadores têm. Eu disse que ele ainda curte música popular brasileira porque ele está bem vivinho da silva, com muita saúde, antenado com o mundo político, a educação e a arte. Ah, ele também mora na bela cidade das Mangueiras.


As horas passaram, mas finalmente chegou ao município de Santa Maria. Já era tarde da noite, e o professor estava cansado e com fome. Parou o carro em frente a uma pequena lanchonete de beira de estrada, que costumava atender clientes durante quase a noite toda. Abir olha para o proprietário e indaga:


- Boa noite! O que tem aí pra merendar?

- Boa noite, senhor! Temos hambúrguer, cachorro quente e pastel folheado. Acompanha suco também de maracujá, caju ou goiaba. Mas se não quiser suco, tem refrigerante.

- Quanto tá o cachorro quente com suco? Indaga o professor.

- Dá quatro real tudo, freguês!

- Tá bom. Então prepara um pra mim.

Depois de alguns minutos, e já com a barriga forrada, o professor Abir seguiu viagem rumo a Belém, rumo à sua casa.


Enquanto o professor do regular tem seu estresse subindo e descendo de ônibus, andando de uma escola pra outra, no meio de tantos carros e barulhos de buzina, correndo atrás de carga horária, o professor Abir Arievilo, assim como outros professores do SOME, percorrem quilómetros e mais quilómetros pra chegar numa escola, para dar de aula. Atravessa pontes quebradas, rios ensandecidos, estradas esburacadas, tempos chuvosos, ruas empoeiradas e lamacentas. O professor não é nenhum masoquista, claro que não, mas esse tipo de atividade dava a ele, ao mesmo tempo, uma espécie de cansaço e disposição, melancolia e euforia, sofrimento e prazer, satisfação. Quando se gosta do que se faz, nunca é demais, nunca é pesaroso, mas edificante. Tudo o que ele fazia sempre era um novo desafio. Mas o desafio maior sempre era o de estar longe da família, da esposa, da filha. Isso porque Abir era e ainda é um homem de família, que quer sua prole participando de todas as suas aventuras e conquistas. Foram mais de mil e quinhentos quilômetros percorridos. O que fez este professor viajar sozinho tão longa distância? Enquanto vai se aproximando de Belém, ele fica imaginando qual será o próximo módulo. Será que é tão longe como este? Será que a prefeitura irá arranjar uma casa pros professores? Será que vamos ter que ficar negociando, e negociando, e negociando com a prefeitura? Essas preocupações vão e vêm na cabeça do professor, mas o SOME das décadas de 1980 e 1990 era assim mesmo, viagens pra perto, viagens pra longe, viagens pro Marajó, viagens pro baixo Amazonas, viagens pra Viseu, viagens pra Transamazônica. Todas essas viagens eram controladas por um departamento administrativo em Belém, conhecido como Coordenação do SOME, que entregava aos professores um cronograma de módulos que compunham quatro municípios por polo, num período correspondente a um ano letivo e, aproximadamente, dois meses por cada módulo, entre feriados e recesso escolar. E esses municípios poderiam ser todos perto ou todos longe, ou alguns perto e outros longe. Se isso era uma questão administrativa e o calendário letivo tinha que ser cumprido, fazer o quê?


Ao trabalho. E, lá se vai, mais uma vez, Abir Arievilo pegar a estrada para mais um compromisso com a educação nos rincões do Pará. Mas as folhas de papel chamex acabaram, a tinta da impressora também, e o narrador está exausto, não consegue mais pensar no que escrever. Até o notebook tá pedindo pra dar um tempo. Portanto, vamos deixar para outro momento a continuidade dessa história. Aliás, essa será uma outra história a ser contada.


*O autor é poeta e ex-professor do Sistema de Organização Modular de Ensino - SOME.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

E POR FALAR EM SAUDADE

 




    *Carlos Alberto Trindade Prestes                     



















Velhos tempos... Velhos dias. Existem coisas memoráveis que não podem passar despercebidas para quem nasceu nos anos sessenta, viveu a adolescência nos anos setenta, a juventude nos anos oitenta, e a maturidade nos anos noventa. O século XXI é uma junção das experiências de todas essas décadas vividas tão intensamente por cada um de nós: as brincadeiras de infância, o sítio do Pica-pau amarelo visto na tevê em preto e branco, as imagens de Belém e a vinheta que tocava na abertura da programação da tevê, as brincadeiras de pira e Trinta e um alerta na rua de casa, sem asfalto, com valas a céu aberto e pouca iluminação; as idas e vindas pra escola de primeiro grau perto de casa, a farda escolar com camisa branca de manga curta, feita de tergal, o nome da escola e o símbolo do Pará no bolso; a calça azul marinho, bem passadinha no ferro de engomar, tudo isso feito em casa, na máquina de costura Elgin, por nossas mães; o sapato escolar da moda era o Vulcabrás preto, com ou sem cadarço, de borracha. Depois veio o segundo grau nas escolas tradicionais, entre elas o colégio Paes de Carvalho, o Augusto Meira, o Souza Franco, o Deodoro de Mendonça, o Orlando Bitar, o Justo Chermont, o Lauro Sodré, o Pinto Marques, entre tantos e tantos espalhados pelos bairros de Belém. Naquele tempo, passávamos a melhor roupa para ir pro cinema num dia de domingo à tarde. Ficávamos ansiosos por chegar o fim de semana, pegar o ônibus e poder desfrutar de um cinema Olímpia ou o Palácio na Praça da República, o Nazaré e o Iracema na Praça Justo Chermont, o Paraíso e o Vitória na Pedreira, o Catalina na base aérea de Val-de-Cães, o Cine Guarany, hoje anexo do Ministério Público na Cidade Velha, o Cine Independência na avenida de mesmo nome, o Cine Aldeia do Rádio na Rua Conceição (atual Fernando Guilhon, no Jurunas), o Cine Art e o Cine Brasilândia na Avenida Senador Lemos, o Cinema Guajarino em Mosqueiro, o Guanabara em Icoaraci. Ah, são tantas as recordações de um tempo tão bom que passou.


Quando chegamos à universidade, parecia que algo extraordinário havia acontecido. O caminho até lá era longo e espinhoso. Trabalho de dia, cursinho pré-vestibular à noite, corujinha, corujão, estudo em casa que entrava pela madrugada nos finais de semana, concorrência nos cursos ofertados, muita gente pra poucas vagas, resultado, comemoração pra uns, tristeza pra outros, piroca o cabelo, quebra ovo na cabeça, trigo, maisena, cachaça, e a marchinha do Pinduca “põe a vitrola pra tocar que eu passei no vestibular!”, uma verdadeira peregrinação. Depois da euforia, vem a realidade: estudo e mais estudo que ocupavam boa parte do dia na faculdade; trabalhos escolares, seminários, pesquisas, defesas, leituras de livros e apostilas, greve de ônibus, protesto de estudantes por meia passagem, e, assim, íamos levando até a formatura, quatro anos depois. Vencida mais essa etapa, agora, com o diploma na mão, era hora de correr atrás de emprego. Essa é a vida de estudante da rede pública.


Depois da formatura, muitos amigos e amigas se dispersaram pelo mundo afora. Uns fizeram concurso público e foram pras escolas públicas municipais, outros para as estaduais, outros para escolas particulares, outros para órgãos administrativos do governo, outros fizeram mestrados e doutorados e foram pras faculdades trabalhar com docência e pesquisa, outros trilharam caminhos diferentes, e outros foram para o Sistema de Organização Modular de Ensino, o SOME, uma política pública educacional comprometida em levar o ensino fundamental e médio (antes era primeiro e segundo graus) às mais distantes comunidades do interior do estado do Pará, cujo objetivo era formar o estudante na sua própria comunidade, no seu próprio município de origem, sem que fosse preciso se deslocar para outros municípios ou para a capital, a fim de concluir os estudos do segundo grau, uma vez que, em muitas cidades do interior, não havia oferta de vagas pro segundo grau, ou seja, não havia segundo grau. Com isso, muitos estudantes deixavam de estudar ou abandonavam os estudos por falta de opção, ou, quando a família tinha condições financeiras, mandava o filho ou filha estudar em Belém ou em outro município que atendesse essa demanda. De qualquer maneira, era um transtorno para quem tinha que deixar casa e família, e ter que morar com parentes, com horários pra chegar à casa, ajudar na alimentação, gastos com transporte, num ambiente totalmente alheio ao seu contexto social. E saibam que muitos desistiam dos estudos por falta de adaptação e, principalmente, pelo fato de a família não ter condições financeiras de manter o filho ou a filha estudando longe de casa.


O sistema Modular foi, sem sombra de dúvida, a melhor política na área educacional que as famílias do interior do estado tiveram ao longo dessas décadas, uma vez que dá oportunidade a essa gente interiorana de sonhar com um futuro mais promissor, de ter a profissão que quiser, de ser professor, mestre e até doutor. As opções a partir do SOME são infinitas. Realmente, a educação muda, transforma a vida em sociedade.


Ao me deparar com fotos, imagens de colegas professores do SOME, imagens que denotam gestos de sorrisos, alegrias, preocupação, indignação, fico me perguntando: Onde eles estão? O que fazem hoje? Por onde andam? Por que não escrevem a história de suas próprias experiências? De certo que há muito que se contar. Coisas que ficaram guardadas no cofre da memória, que dariam coletâneas e coletâneas de livros impressos.


Muitos se lembram das reivindicações dos professores do SOME que foram pras ruas de Belém protestar em pleno governo militar. E ainda tem gente dizendo que não houve ditadura no Brasil. Será que não tem nenhum professor aqui lendo este artigo, que nunca correu da polícia quando reivindicava meia passagem nos ônibus urbanos? Será que tem alguém aqui que nunca levou uma cassetada com cassetete de borracha ou viu um colega levar? Será que ninguém aqui não foi parar na cadeia e ver o sol nascer quadrado, simplesmente porque protestava por um ensino de qualidade? Lembro de uma vez em que, durante um protesto por causa do aumento da passagem do ônibus, meu irmão, que era estudante de história na Universidade Federal do Pará, junto com outros estudantes, foi perseguido nas ruas de São Brás por policiais militares armados de cassetete. Ele e mais dois colegas entraram numa vila, viram a janela da sala de uma casa aberta e pularam pra dentro dela, caindo em cima das pessoas que estavam sentadas no sofá assistindo televisão. Foi hilário. Os donos da casa, logo no início e, diante da surpresa e ousadia, se assustaram. Mas logo os três estudantes se identificaram e explicaram a situação para aquela família, que resolveu ajuda-los, escondendo-os na casa. Os policiais militares passaram pela rua, pararam em frente à casa e perguntaram se não tinham visto três jovens passarem correndo por ali, três marginais. O dono da casa disse que não viu nada, e, então, os policiais foram embora.


Quando vejo a imagem da Ester, que foi coordenadora do SOME, em plena manifestação nas ruas de Belém, lutando pela educação paraense, lutando também pelo Sistema Modular, juntamente com outros tantos colegas de profissão, como o Cláudio Paixão, Iris, Ribamar, Nonato Bandeira, Yorké, Cláudia, Marina, Sérgio Bandeira, Jorge Coutinho, Waldir Araújo, Medeiros, Edgar, Erecê, Reginaldo de matemática, Rosivaldo também de matemática, e centenas de outros colegas, uma centelha de esperança me aquece o coração, pois sei que muita gente ainda se preocupa com os rumos da educação, que muitos têm esse ofício como uma segunda família ou parte da família.


São bravos e corajosos os professores do Sistema Modular, porque foi com ousadia que foram desbravando os rincões mais distantes do nosso estado. Com quantos problemas não se depararam em suas andanças? E as negociações com a prefeitura local que incluíam casa e alimentação? Quantas vezes não tiveram que se digladiar com gestores municipais por causa do subsídio, ou por denunciarem problemas na escola, no transporte de alunos, na energia do motor que parou de funcionar. De tudo se achava um pouco, até problemas com ratos, baratas e fantasmas na casa dos professores. Muitas escolas também apresentavam sérios problemas de infraestrutura, falta de pintura, falta de espaço para atividades extraclasse e, muitas vezes, as salas de aula eram improvisadas com algumas carteiras e um quadro de giz. Em meio a todos esses transtornos, ainda era preciso fortalecer o ânimo de alguns alunos e diminuir a evasão escolar. E também fortalecer o ânimo do próprio professor.


Quantos aniversários comemorados longe da família, dos amigos próximos; quantos casamentos de anos desfeitos, quantos namoros terminados, quantos amigos deixaram o município sem se falarem. Tudo na vida tem, no mínimo, dois paralelos, duas coisas contrárias que não se unem, como duas estradas que apontam em sentidos diferentes. Do mesmo modo foi e ainda é o SOME: Junta e afasta famílias, amigos, cônjuges, namorados, por causa do compromisso com a educação. Que paradoxo. A educação junta e afasta, ensina uma coisa e faz desaprender outra. Felicidade pra uns, tristeza pra outros. Sim, os professores mergulharam no desconhecido à procura da pedra rara, da flor azul que brilha nas noites de luar. Esse brilho, não raras vezes, era encontrado nos olhos do professor que, mesmo diante de tamanha saudade da família, sabia que estava fazendo algo grandioso que poderia mudar a concepção de mundo, da sociedade globalizada: ele estava ensinando o seu aluno a pensar por si só, a ter liberdade de imaginação, a olhar o outro como a si mesmo.


É... Quando eu olho para fotos antigas, tiradas com a velha Kodak ou com a Polaroide – fotos de um tempo em que se mandava revelar os negativos em estúdio – vejo uma parte de minha vida e de meus amigos pausada no tempo, quase em preto e branco, com momentos históricos de atividades de sala de aula ou em algum momento de descontração entre professores e alunos. O que ficou, ficou gravado no tempo. Um tempo de aprendizagem para toda uma vida. Aprendizagem do professor, aprendizagem do aluno que, desta vez, pode-se ler e reler em livros, cujos autores vivenciaram cada trecho escrito.


*O autor é ex professor do Sistema de Organização Modular de Ensino - SOME e Poeta.

 

sábado, 17 de dezembro de 2022

ESCRITOR DO SOME É HOMENAGEADO EM ESCOLA DO ESTADO

 



 

A escola de ensino médio Abraão Simão Jatene em Cametá esteve realizando um evento comemorativo aos dez anos do Café Literário da biblioteca da escola, e o escritor moduleiro Arodinei Gaia foi escolhido como homenageado no evento.






O Café Literário é uma realização da biblioteca Clarice Lispector e visa aproximar os estudantes do mundo da leitura.





O projeto foi efetivado no ano de 2012 pelas mãos do ex coordenador do SOME de Cametá, professor Sebastião Fiel. O professor Sebastião ao deixar o SOME, assumiu a direção da escola sede do modular na época, a Escola Estadual de Ensino Médio professora Osvaldina Muniz. Ao final da gestão foi lotado na biblioteca Clarice Lispector da Escola Simão Jatene. No entanto, para garantir a carga horária necessitava criar algum projeto anual para enviar a SEDUC. Assistindo o programa Café Filosófico na TV Cultura veio a ideia de criar algo parecido, porém na linha literária, foi então que surgiu o projeto Café Literário: Uma conversa com escritores. O espaço ocioso da biblioteca era o ambiente perfeito para o empreendimento.




O projeto consistia em convidar, escritores, poetas e produtores de cultura da região e coloca-los frente a frente aos estudantes da referida escola. O professor Sebastião Fiel almejava proporcionar uma interação e estreitamento entre quem faz e quem consome o produto cultural, principalmente, a literatura. Era fazer o leitor conhecer o autor, conhecer o seu trabalho e ler a sua obra.





A ideia deu certo e em 2012, na primeira edição foram convidados o poeta Alberto Mocbel e o escritor Doriedson Rodrigues, da Ufpa.  Em seguida outros convidados como os professores escritores do SOME Arogas, Arodinei Gaia e Haroldo Barros. Também já esteve Paulino Dias, os poetas Francisco Mendes e Miguelângelo Mocbel, entre outros.


A responsabilidade pelo projeto, hoje, além do professor Sebastião Fiel, conta com a professora Gilma Guimarães Lisboa e Rivaldo Arnaud Lisboa, docentes readaptados na escola que abraçaram a causa. Rivaldo é historiador, Sebastião e Gilma são da área de letras, amantes da leitura, entusiastas da influência positiva que o ato de ler promove na formação dos estudantes. Então cuidar da biblioteca da escola e fomentar o projeto literário é como um presente para os professores.


A dinâmica do projeto ocorre com o bate papo entre os escritores e os leitores, onde estes conhecem um pouco da vida profissional e literária dos convidados. Respondem as perguntas dos estudantes e dos docentes presentes, tudo recheado a contação de histórias e estórias, declamação de poesia e música. Tudo acompanhado de um delicioso café da manhã, com frutas, sucos, biscoitos, pão e demais guloseimas ... literalmente um saboroso “café com literatura”.


Ao final do evento, os convidados presenteiam a biblioteca com exemplares de suas obras, o que favorece o enriquecimento do acervo com livros de autores regionais, que serão disponibilizados para empréstimos aos estudantes da escola. É um projeto em que todos saem ganhando e o incentivo à leitura ocorre de fato. O evento é custeado pelos organizadores com apoio da gestão da escola.


Neste ano de 2022, o evento foi promovido juntamente com a feira Pedagógica Cultural da Escola, e por está completando dez anos de atividade, os responsáveis resolveram fazer algo especial, diferente que marcasse a data. Assim, decidiu-se pela homenagem a um escritor, sendo escolhido Arodinei Gaia de Sousa, tendo como destaque a sua produção na literatura de cordel. O escritor é membro da Academia Paraense de Cordelistas e da Academia Cametaense de Letras.


Nessa edição comemorativa, outra novidade foi que o evento ocorreu o dia inteiro de forma itinerante aberto ao público com convidados de diversas escolas, de ensino fundamental e médio, que em forma de rodízio participaram a assistiram o bate papo com o escritor homenageado, que falou do seu trabalho, mostrou os novos livros de cordel, apresentou o mais recente “A moça do Cemitério” e “A maldição da mansão Barcelar” (este escrito com os poetas Niro Carpen de Ananindeua, Márcio Fabiano de São Paulo e Ulisses Ângelo da Bahia)”, a inspiração que o fez escrever os dois contos de cordel e também apresentou, junto ao violão, algumas de suas músicas autorais.


O Café Literário idealizado pelo ex-coordenador do SOME da 2 Ure – Cametá, já mostrou para que veio. Os frutos já estão sendo colhidos. A biblioteca ganhou vida, a sala de leitura passou a ser mais visitada pelos estudantes. Enfim! O incentivo à leitura e a valorização dos autores regionais tornam-se a grande marca que o projeto deixa como legado. 

sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

O BATISMO DO PROFESSOR ABIR ARIEVILO


Quem nunca ouviu falar do SOME, dos professores do Sistema Modular que saíam, em grande parte de Belém e outros municípios vizinhos, para irem a outros municípios do interior do Estado do Pará? Sabem pra quê? Pra dar aula. Eram professores, trabalhadores que tinham como profissão ensinar o aluno e a aluna a pensarem por si mesmos. Consigo até vê-los batendo com a palma da mão no peito a exclamar em alta voz:


- “Sou Professor! Professor do Sistema Modular de Ensino!”


Você já teve uma experiência como essa? Já saiu do conforto da sua casa e viajou quilômetros e mais quilômetros, indo a lugares onde nunca havia pisado antes, conhecendo gente que nunca tinha visto, confrontando com culturas que não conhecia? Pois é. Esses professores passaram por todas essas experiências. Incríveis experiências! Ah, sim! E muitos ainda passam, porque o SOME continua em plena atividade, desde 1980. Isso mesmo. Já se vão aí quarenta e dois anos de existência de uma política pública ímpar no Brasil, que eu e meu caro amigo Abir Arievilo, tivemos a honra de fazer parte dela.


Por falar em sistema modular, em professores e viagens, sabem quem é Abir Arievilo? Esse nome estranho, ou, no mínimo, um tanto diferente, não lhes causa nenhuma curiosidade? Ele já apareceu em outras histórias que eu contei aqui, rabiscando essas páginas. Sim, ele foi professor do SOME e encontra-se, atualmente, aposentado da SEDUC. É uma aposentadoria apenas formal, institucional, que o tirou dos quadros efetivos da Secretaria de Educação para dar lugar a novos professores. Como eu disse, é uma aposentadoria apenas institucional, porque o professor Abir Arievilo continua em plena atividade, não em sala de aula, mas através de vários meios pelos quais desenvolve atividades pedagógicas, quer seja escrevendo, participando de atos pela democracia, eleições, palestras, sempre atento a questões que envolvam a sociedade, a educação, a cultura, a dignidade humana, temas estes tão relevantes que movem sua vida e sua biografia.


Há tantas histórias escondidas na memória de Abir Arievilo. Tantos fatos, imagens, acontecimentos, linguagens, tudo tão guardadinho ali, em algum lugar da memória, querendo empurrar a porta de saída pra ver o sol novamente, pra mostrar ao tempo presente um passado fabuloso feito por gente, uma mistura de gente que ousou sonhar em ser amiga do rei, com uma educação sem fronteiras, com a munição do livro subjugando a munição da bala. É uma pena que muitas dessas histórias irão se perder na memória de muitos outros professores que se aposentaram do ofício de ensinar a pensar por si mesmo. Os motivos são diversos: muitos pediram ou foram obrigados a pedir transferência para o ensino regular e, com isso, acabaram por acumular novas recordações, novos amigos, novos alunos com realidades diferentes das dos alunos do interior, expulsando da memória da mente, verdadeiros tratados reais de história, de antropologia, de fenômenos culturais vivenciados em suas viagens; outro motivo foi a inabilidade com o trato da escrita, ou seja, muitos professores até lembram bem de fatos vividos e presenciados quando eram viajantes do modular, e até conseguem contar, falar sobre o assunto com entusiasmo, mas não conseguem escrever uma linha sequer, porque falta-lhes o domínio das letras; outros até fazem as suas anotações, os seus rabiscos e estão à espera de uma oportunidade para publica-los, seja em coletânea ou de forma autoral; há também os que simplesmente perderam a esperança e se cansaram de esperar por uma oportunidade de ter seus escritos publicados,  e deixaram que as traças e o mofo dessem fim a todas as suas memórias; por fim, infelizmente, há também aqueles que esperaram uma vida toda pra verem seus nomes estampados na capa de um livro, seja de poesia, conto, crônica, romance, artigo científico, mas a doença e a morte os levaram antes que eles tivesses tido essa experiência. Que alegria seria pra eles, não? Experimentar isso em vida, poder tocar no livro, abrir suas páginas, folheá-las, admirar a arte da capa, lê-lo de cabo a rabo e nunca cansar de ler. Ah! A vida estaria completa, perfeita.  


Então, para que não corramos esse risco de perder nossa memória, vamos registrar, aqui, mais uma história de vida do professor Abir Arievilo. Bem, quando ele viajava, deixava sua família até por dois módulos. Quem não conhece o sistema modular, com certeza não sabe o que isso significa. Meu caro leitor, caro entusiasta das histórias reais de nossa terra, quando digo que o professor, às vezes, ficava até dois módulos distantes da família, quero dizer que ele ficava quatro meses longe de casa, longe da esposa, do esposo, dos filhos, da mãe, do pai, do irmão, da irmã, dos amigos, dos parentes. E quatro meses é muito tempo. Quero lembrar que o professor Abir e sua família moravam em Belém. Essas viagens estavam programadas para várias regiões do estado do Pará, como baixo Amazonas, sudoeste do Pará, sul do Pará, nordeste do Pará, Marajó; algumas das regiões eram distantes, outras nem tanto, e outras mais perto da capital. Muitas vezes, o professor era mandado para um município distante e, se o próximo município de seu polo fosse perto de onde estava trabalhando, ele já não retornaria para a capital, porque o tempo de recesso era curto em Belém.


Isso aconteceu até antes de 2003, quando a SEDUC desestruturou o Sistema de Organização Modular de Ensino nos interiores do Estado do Pará, proporcionando a descentralização na coordenação desta política pública.


Pois então. Era o mês de maio e o ano de 1989, e Abir Arievilo, em mais uma de suas viagens, pegou uma embarcação de dois andares, de Santarém para Oriximiná, porém, como marinheiro de primeira viagem, chega ao barco com rede, porém, sem as cordas para atar nas escápulas. Devido ao tempo já passado – trinta e dois anos – seria quase certo que o nosso personagem não se lembrasse do nome da embarcação, e não lembrou mesmo. Mas deixa estar que o gerente da embarcação percebeu a inexperiência de Abir em amarrar sua rede. Então, diz ao marinheiro de primeira viagem:


- Senhor, é melhor comprar as cordas para os dois punhos. Desse jeito, não conseguirá armar sua rede. Tem comércio aqui perto. - e apontou para o dito comércio logo à frente.


Enquanto isso, os passageiros começaram a chegar à embarcação. Abir Arievilo foi a uma loja, logo ali perto, atrás das benditas cordas. O movimento no porto era intenso naquele horário, em virtude da maré facilitar a viagem. Gente carregando sacola, mala, peões com sacos de farinha nas costas, mulheres com crianças se acotovelando pra entrar no barco. O comércio também tinha lá o seu movimento, gente nas ruas comprando, trabalhando ou apenas passeando numa tarde de sol. Ali, se vendia de tudo, principalmente utensílios de cozinha, eletrodomésticos, motores de pequeno, médio e grande porte para embarcações, botijão de gás, fogão, geladeira, panelas, roupas, produtos hortifrutigranjeiros; ali tinha loja que vendia pra todos os gostos, farmácias, supermercados, feira e até um posto da Telepará com os seus orelhões; foi ali, no meio daquele burburinho todo, que o professor encontrou uma loja que vendia cordas para redes.


Retornou à embarcação rapidamente com dois pedaços de cordas. Mesmo assim, teve dificuldade para amarrá-las nos punhos da rede. Porém, um senhor aparentando ser sexagenário, percebendo o aperreio dele, se aproximou e perguntou se poderia ajudar. É claro que Abir aceitou a providencial ajuda; e logo ficou sabendo que a rede daquele senhor estava atada ao lado da dele.


Logo, Abir inicia um diálogo com o senhor que o ajudou e, talvez, querendo retribuir a generosidade daquele senhor, que, para não ficar repetitivo, vou chamá-lo pelo nome fictício de Vargas, estendeu a conversa até tarde da noite.


Entre as conversas que o senhor Vargas puxou, uma delas tinha uma importância maior: era sobre a história que aprendera lendo os livros didáticos dos netos. Ele dizia:


- Meu filho, meus netos chegam das aulas, vão largando tudo por qualquer lugar da casa, mas eu aproveito a oportunidade pra mexer nos livros, ler as histórias, os textos. Já que não gostam de ler, eu faço isso com todo o carinho. Não é peso nenhum pra mim. Gosto de mexer nos livros, de aprender, afinal, eu não tive a oportunidade que eles tão tendo.


Entre os destaques dos assuntos que puxou, o que tratava sobre Getúlio Vargas era o que mais gostava de abordar, pois, para ele, Getúlio Vargas foi o melhor Presidente da República do Brasil, já que era considerado o pai dos pobres. O legado que Getúlio tinha deixado para a história era um registro vivo para aquele senhor. Ele se apresentou para o professor e vice-versa, mas já vão trinta e três anos que aquela conversa aconteceu no interior daquela embarcação que saia do porto de Santarém e, consequentemente, Abir não tem lembrança do nome daquele senhor. Por isso, pedimos perdão à história e continuaremos a chamá-lo de Vargas.


Abir percebeu que, quando Vargas falava de Getúlio, tinha sempre uma expressão de alegria e emoção no rosto. Abir olhava atentamente para ele e ficava pensando consigo mesmo que, aquele velho homem, mesmo com toda a sua simplicidade de homem rude do interior, parecia saber mais de história do que ele, que era professor da disciplina. Não era o conteúdo dito pelo velho Vargas que o impressionara, mas a emoção na voz, no rosto, quando partilhava um pedaço do que aprendera. Dava a impressão de que tinha vivido tudo aquilo. Abir deve ter imaginado que essa emoção impactante estaria faltando em muitos educadores que, por sua vez, priorizavam o conhecimento seco, formal, endurecido pelos problemas pessoais, profissionais, financeiros, e uma enxurrada de provas sem sentido era jogada nas carteiras dos alunos, exigindo que não tirassem menos de sete. E, se isso acontecesse, já era uma justificativa para a reprovação do “mal” aluno.


Tanto tempo que passou. Tantas décadas e nada mudou no ensino? Os professores continuam passando provas objetivas e decorebas com tabelinha de certo ou errado? Os alunos continuam com a mente cauterizada por uma pedagogia que lhes impede de pensar, de voar com as asas da sua própria imaginação? Continuam impedidos de decidirem por si mesmos qual o próximo passo que darão nas suas vidas? Até eu - esse personagem onisciente -, também quero poder voar nas minhas observações acerca desta aventura de Abir Arievilo.


Pois bem, voltemos à nossa história. Quando a embarcação aportou em Oriximiná, a amizade entre os dois novos amigos se fortaleceu ainda mais. Os dois iriam pegar outra embarcação de pequeno porte do porto de Oriximiná para Terra Santa. Aquele velho senhor iria ficar no meio do caminho. Eram quatro horas da manhã quando aportaram em Oriximiná. Ficaram ali a manhã todinha e parte da tarde, até às dezesseis horas, mais precisamente, à espera de outra embarcação menor, a dita que os levaria até Terra Santa.


Finalmente, o barco desatracou do porto e saiu rio acima, fazendo seu barulho característico de motor queimando combustível. Era uma embarcação pequena, tipo uma rabeta coberta, que tinha lugares para, mais ou menos, doze pessoas. O porto e a cidade de Oriximiná iam ficando para traz à medida que a embarcação se distanciava da beira e mergulhava nas águas misteriosas daquele rio. A cada mergulho do barco naquelas águas, Abir parecia se render mais às orações e aos santos, pedindo para que a viagem terminasse o mais rápido possível, ainda que apreciasse bastante a paisagem. E o senhor Vargas, aquele velho senhor, calejado de tantas idas e vindas rotineiras pelas águas daquele rio, entre Santarém e sua comunidade, se divertia com o comportamento do professor.


Abir aproveitou cada momento das conversas que teve com o velho senhor, ali, deitados um ao lado do outro, cada um na sua rede que balançava ao ritmo da maresia. O professor Abir o achava uma figura ímpar, muito inteligente e interessado pelo conhecimento, por fatos históricos, um ser original. Infelizmente, repetindo o ciclo da história de muitas outras famílias que moram nesse pedação de Pará, não teve oportunidade de estudar. Segundo Vargas, ele era apenas um pequeno agricultor que vivia de plantar, de cuidar da terra, de lavrá-la e de se sustentar dela. Plantava verduras e frutas. Tudo vinha dela, tudo o que conquistou foi através dela: a casa, o sustento da família, os bens, móveis, a educação dos filhos. Também era pescador. Pescava para fazer o famoso piracui, peixe desfiado pelos familiares que ajudava na renda da família. E ele dizia a Abir, enquanto coçava os dedos do pé esquerdo:


- Olhe, seu moço! Se o senhor me perguntasse agora se eu tô arrependido de ter estudado pouco, eu lhe digo que tô não. Pois eu faria tudo de novo. Pra ver meus filhos e netos estudando, eu faria sim, tudo de novo. Ora se faria!


- No meu tempo, seu moço, as oportunidades eram poucas. Escola não tinha na comunidade, nem quem ensinasse. Nem emprego tinha pra quem vivia afastado da cidade. Se quisesse sobreviver, tinha que pegar na enxada, no terçado, no ancinho e ir pra roça de sol a sol. Agora, veja só! Já tem até professor indo atrás do aluno, indo ensinar lá na terra dele, perto da família, como o senhor que vem de Belém pra ensinar em Terra Santa. O senhor tá um bocado longe de casa!


A conversa durou ainda por algum tempo, até que aquele velho senhor chegou à sua parada de destino. O barco atracou num pequeno trapiche de madeira. O senhor Vargas se despediu de Abir com um forte aperto de mão, que o professor pensou que tivesse fraturado os dedos; então, desceu do barco e subiu a velha escada do trapiche. Nos fundos, algumas casas de palafitas, alguns poucos comércios e uma ponte de tábuas que dava acesso às casas que margeavam o rio. Era uma comunidade ribeirinha pacata, de pessoas pacatas, ali, vigiando o rio Amazonas.


Quando a embarcação deixou o pequeno trapiche, ainda era possível Abir ver aquele velho senhor acenando lá da terra seca, dando adeus.


- Até mais vê, professor!

- Até mais vê, seu Vargas!


Essa imagem ficou diante dos olhos de Abir até sumir de vista. Naquele momento, para ele, havia ficado uma sensação de que a embarcação estava vazia, mesmo com tantos outros passageiros a bordo. O problema é que eles não tinham o mesmo entusiasmo e alegria daquele senhor que tinha ficado para traz, naquela comunidade tão desconhecida para o professor Abir, às margens de tão imenso rio.


Assim, Abir seguiu sua viagem, uma longa viagem até seu destino: Terra Santa. Lá, iria cumprir o calendário de 56 dias letivos daquele período, em seu primeiro município de trabalho pelo sistema médio modular. Era a sua estreia e seu batismo de professor itinerante do SOME. Para ele, tudo era novidade e alegria, mesmo com dificuldades, por vezes encontradas.


No mês de julho de 1989, Abir e outros professores, retornaram de Terra Santa para Santarém no barco de mesmo nome. Lá chegando, descobriram que a companhia de aviação Varig, havia desmarcado suas passagens devido à demanda de viagens. Não tendo outra alternativa, voltaram de carona no mesmo barco “Terra Santa” que estava indo para Belém. Sete dias, sete dias viajando por além-mar do rio amazonas, vendo paisagens que, talvez, nunca mais poderão ser vistas, pássaros sobrevoando o rio, botos tucuxis, botos cor de rosa, aquela brisa no rosto, aquele som de águas batendo no casco da embarcação. Ah, sim! Com certeza, Abir Arievilo ficava imaginando quantas histórias ele tinha pra contar aos seus familiares e amigos sobre tudo que viu, ouviu e viveu. Quem poderia conhecer mais a fundo esse nosso torrão do que os professores do modular?


Abir Arievilo chegou a Belém no dia vinte de julho de 1989. Chegou cheio de bagagens. Bagagens na memória e no coração que nada poderia apagar. Tanto é verdade que estamos contando um pouco de suas memórias. E você está lendo, e se deliciando com esses fatos simples da vida cotidiana.


Ah, não se preocupem! Acham que a história chegou ao fim? Não, não! As histórias do SOME nunca chegam ao fim, pois Abir Arievilo ficará apenas alguns dias em Belém, no máximo algumas semanas. E logo, logo estará voando de novo para um novo município, uma nova comunidade, em alguma parte deste imenso território paraense.

 

*O autor é poeta, escritor e ex-professor do SOME, Curitiba, 08 de dezembro de 2022


quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Lançamento de livro: Educação na Amazônia em Repertório de Saberes: O Sistema de Organização Modular de Ensino, volume II

 








No dia 03 passado, no Espaço Cultural APOENA, aconteceu o lançamento do livro Educação na Amazônia em Repertório de Saberes: O Sistema de Organização Modular de Ensino, volume II, pela Editora Cabana, com presença de convidad@s , amigos e familiares dos Organizadores e Autores.






O livro promove debates e reflexões acerca das experiências da arte de ensinar e aprender. É de grande valor pedagógico, estimulante, energiza os educadores, com suas ações favoráveis à inclusão. 






Os artigos apresentados são decorrentes das pesquisas, das experiências de troca de saberes, entre comunidade e professores pesquisadores que nos revelam olhares , que se movimentam em trilhas educativas  e muitas vezes hibridas. 







O SOME é uma política de Estado consolidada que, com suas estratégias pedagógicas, democratiza o acesso ao ensino com qualidade, estimula também o exercício do pensar, realiza sonhos e leva as comunidades a acreditarem em si mesmas.


 





O volume II, propõe-se a revelar outras pesquisas e vivências. Os autores e autoras, professores e professoras, com base em suas pesquisas, relatam experiências que certamente, darão aos leitores e leitoras oportunidades de novas pesquisas, estimularão novos relatos de valorosos e ricas vivências.






Interessad@s em adquirir o livro, entre em contato com os Organizadores ou Autores.