*Carlos Prestes
AÇAITEUA
Uma rua vermelha... De canto
Uma escola na entrada do lugar
Uma igrejinha, na qual o padre,
Vindo não sei de onde,
Vez por outra celebra missa.
Uma pracinha mal iluminada
Onde costumam se encontrar
Adolescentes enamorados.
Outra escolinha lá... No fundo da praça,
Esquecida.
Um carro de boi
Com um lamento ruidoso...
Eis o retrato de Açaiteua.
(Carlos Prestes)
Há casos e casos a se contar. Casos amorosos, trágicos, horripilantes, tenebrosos, sim, casos e casos. Principalmente quando você já trabalhou como professor do Sistema Modular. Quantas histórias devem estar guardadas na memória de cada um desses professores aposentados e ativos. Quanto de histórias que já se perderam no esquecimento do tempo; e quantas histórias que já foram enterradas na morte de um professor. Se têm-se, atualmente, mil e trezentos professores ativos no SOME, temos, pelo menos, mil e trezentas histórias de memórias para contar. Ninguém precisa ser escritor pra dar vida a uma história de memória, basta soltar a voz e contar para alguém que, com habilidade suficiente para escrevê-la, irá imortaliza-la no blog do Riba, nas redes sociais e, também, muito provavelmente, em livro impresso.
Deixe-me apresentar-me. Meu nome é Emos. É um nome fictício, assim como os nomes dos outros personagens que aparecerão nessa história. Porém, apenas os nomes são fictícios, porque a história é totalmente verdadeira, assim como tantas outras histórias narradas por autores do SOME, como as histórias do professor Abir Arievilo.
Traçando essas linhas em meu velho notebook, companheiro de todas as horas, que me aguça a imaginação, levando-me aos tempos em que fui um professor itinerante do SOME, lembrei-me – Como não poderia deixar de lembrar? – de casos e mais casos por onde passei, nas caminhadas pelo interior do estado do Pará. Ah! Naquele tempo, tudo era mais difícil para o professor, creio eu. No meu caso, muitas vezes, deixava Belém, onde eu morava, e rumava para algum município do interior, indo de barco ou de ônibus intermunicipal. Raras vezes, peguei avião. Isso acontecia apenas quando ia pra região da Transamazônica ou do sul do Pará. O avião saia de Belém direto pra Altamira. De lá, do aeroporto, íamos, eu e outros colegas professores, de táxi, direto para o ponto das kombis. Essas kombis nos levavam para o município onde iríamos trabalhar, desafiando a estrada escorregadia e lamacenta da Transamazônica. Que experiência incrível! A kombi atolava, deslizava de um lado pra outro, o motorista acelerava pra não atolar, mas atolava. Todos os homens saiam do carro pra ajudar a desatola-lo, apenas as mulheres e crianças ficavam no seu interior. Uma vez, como eu era inexperiente, fiquei atrás da kombi para empurra-la. Quando o motorista acelerou, aquele monte de lama amarela veio pra cima de mim. Tiramos a kombi do atoleiro, mas eu cheguei em Uruará por volta das seis da tarde – tínhamos saído às dez da manhã – com roupa e sapatos todos sujos daquela lama amarela e barrenta, que, no banho, tinha que fazer muito esforço pra tira-la do corpo, dos cabelos, da roupa e dos sapatos também.
E a bagagem? Ah, a bagagem era outro problema! Eu, particularmente, levava duas: uma com roupas e outra com material de aula: livros, muitos livros, uma resma de papel, estêncil, álcool, canetas, lápis, fitas de vídeo, fitas kassete e, às vezes, até gravador e uma máquina de fotografia. Com os livros, eu reunia a turma em equipes e colocava-os pra fazerem pesquisa, uma vez que, quase sempre, não havia bibliotecas nos lugares pra onde íamos. Os livros também serviam para montar junto com os alunos e alunas, uma sala de leitura, e isso foi feito em alguns municípios carentes, como distrito de Fernandes Belo, também conhecido como Vila Quitéria, e Açaiteua. Os livros também ajudavam muito na elaboração de seminários e defesa de trabalhos em equipe, fazendo com que alunos e alunas socializassem aquilo que estavam lendo e, com isso, era mais fácil assimilar o conhecimento.
Naquele tempo, não havia, ainda, o programa do governo federal “Luz para todos” e os municípios do interior do Estado do Pará, quase que inteiramente, pelo menos todos por onde passei, eram iluminados por geradores, que funcionavam a partir das seis horas da tarde e eram desligados por volta das onze horas da noite. Imaginem o sufoco das donas de casa, que tinham que aproveitar esse tempo – de mais ou menos cinco horas de energia elétrica – pra colocar a geladeira pra funcionar e gelar água, fazer gelo, congelar comida pra não estragar, fazer picolé, chope (conhecido também como geladinho), além, é claro, não podemos esquecer, da televisão, da novela das seis da tarde, da novela das oito da noite. Alguns donos de bar tinham seu gerador próprio, outros que não tinham e dependiam dos geradores da cidade, enchiam seus freezers horizontais com gelo, cerveja e refrigerantes pra que a mercadoria não ficasse empatada e pudessem comercializar. Assim era a vida nos interiores do Pará até os fins dos anos noventa, e o professor do SOME conhece toda essa história, todos esses relatos, toda essa fartura de cultura.
Nós vivemos um tempo que a nova geração, essa, que veio depois de nós, não conheceu, a não ser por livros e fotos, imagens, como se estivessem olhando pra dentro de um museu com peças de antiguidades, de um tempo que se foi. Nós somos as peças antigas, nós somos essas antiguidades, nós somos esse imenso museu arqueológico. Quanta riqueza há em nossas memórias! Memórias vivas, que se mexem! Memórias de tempos incríveis da máquina datilográfica, manual ou elétrica, onde, em dias de aula ou de provas, eu colocava a folha de papel chamex junto com o estêncil, e passava parte das manhãs escrevendo textos e elaborando provas. Aquele barulhinho característico das teclas da máquina quando eu escrevia (tec, tec, tec...), com dedos ágeis das duas mãos, ainda sibila na minha mente, e me enche de nostalgia. Naquele tempo, era comum fazer um curso de datilografia básica pra aprendermos a usar a máquina.
Quando os textos estavam terminados, era hora de tirar cópias no mimeógrafo, aquele aparelho de cor amarela, que reproduzia cópias a baixo custo e que foi substituído, depois, pela impressora e pela máquina de Xerox, assim como a máquina datilográfica foi substituída pelo computador. E como era o procedimento para uso do Mimeógrafo? Colocava-se o álcool azulado num compartimento interno do aparelho, numa espécie de estufa, preparava-se o estêncil na posição para impressão, arrumava-se o papel sem pauta no mimeógrafo e, então, começava o processo de impressão, rodando a manivela existente ao lado do aparelho. Logo, as folhas de papel iam saindo copiadas. Era assim, naquele tempo. Nem carecia de energia pra máquina datilográfica funcionar, nem pro mimeógrafo. Era tudo muito simples e econômico. Mas tudo foi ficando pra traz, tudo ficou obsoleto: a máquina datilográfica, o estêncil, o mimeógrafo amarelo, o álcool azulado, os geradores, tudo virou peça de museu, guardados como relíquias de um passado do qual, nós, geração de oitenta e noventa, vivenciamos. Essa palavra – obsoleto – não deveria nunca ter sido inventada, pois torna inválido não apenas coisas materiais, mas o próprio ser humano.
Como não lembrar, também, do telefone fixo, colocado na sala de casa, pra que todos pudessem ouvir quando tocasse? Como não lembrar dos orelhões, das fichas para fazer ligação que, depois, foram substituídas pelos cartões digitais? Como não lembrar das agências da Telepará espalhadas pelo território paraense, onde eu, pelo menos, uma vez por semana, me metia numa fila, esperando a minha vez de telefonar. Antes, tinha que dizer à telefonista, o destino da ligação:
- Pra Belém!
E isso tudo, tinha um custo a pagar. “Tempo bom não volta mais, saudade de outros tempos iguais!”, esse slogan era do Lilica, personagem humorístico do programa de televisão “Balança, mas não cai”. Que grande verdade trazem essas palavras. O tempo não volta, nem para, como dizia o Cazuza. Ele segue em frente, e nós tentamos acompanha-lo, mas até onde? Até quando? O tempo não é material nem concreto, nem psicológico. Isso tudo é invenção humana pra satisfazermos a nossa alma, uma tentativa de preenchermos um vazio inexplicável na nossa trajetória nesse mundo. E nós vamos ficando para traz, enquanto o tempo continua avançando e construindo novas histórias.
Ah, mas essa não deixarei que passe! Ainda há tempo de conta-la, de registra-la na memória das pessoas, pelo menos por algum tempo. Eu estava em Açaiteua, interior de Viseu, com meu amigo professor, que vou chamar aqui de Tós, e a amiga professora, que vou chamar de Aivlis. Era uma sexta-feira, já começando o final de semana e aquela era a última aula da noite. O lugar era bem pequeno e pacato. Havia uma rua principal de chão batido e vermelho, uma escola municipal logo na entrada, uma fila de casas à beira da rua principal, que se prolongava por uns quinhentos metros ou um pouco mais. Quase no final da rua, havia uma pequena praça, e é claro que havia, também, uma igrejinha católica no centro – sempre há – bem em frente à praça, marcando território. Descendo a praça, do outro lado, havia uma escola estadual, com, aproximadamente, quatro salas de aula e uma secretaria, se não me falha a memória. A escola era bem pequena, e funcionava, pela manhã e à tarde, com o ensino básico fundamental, e, à noite, com o ensino médio do sistema modular. A maioria dos professores eram nossos alunos. A escola não parecia ter cores, e, se já tivesse tido algum dia, havia desaparecido com o passar dos anos.
Do lado da escola, descendo pela rua da pracinha, dobrando a próxima rua que passava por detrás da igreja, estava a casa dos professores, uma casa de madeira, com um pequeno pátio, sala, dois quartos, um banheiro entre os quartos, uma cozinha e um pequeno quintal. A casa era de uma ex-aluna nossa que fora passar um empo em Belém.
Naquela noite, depois das aulas, noite de sexta-feira, de tênue luar, um luar de quarto crescente, portanto, de uma noite não tão clara, mas também não tão escura, o professor Tós e a professora Aivlis já estavam de malas prontas pra embarcarem no ônibus da Boa Esperança, que passaria, naquela noite, lá por volta de uma hora da manhã. E eles sabiam que não podiam perder aquele ônibus, pois era o único por noite. Se perdessem o coletivo, só no outro dia, ou melhor, só na outra noite. E eles pretendiam aproveitar o final de semana com as suas famílias e voltar pra Açaiteua na segunda-feira pela manhã. A viagem durava em torno de sete horas. Então, deveriam chegar a Belém, por volta de oito da manhã.
Foram para a beira da estrada, em frente à pracinha, onde ficaram esperando pelo seu transporte. Cerca de uma hora e vinte minutos da madrugada, lá vem o Boa Esperança buzinando alto pra que as pessoas que pretendiam viajar, não perdessem a viagem. Os professores embarcaram e eu voltei pra casa com a lanterna na mão, enquanto a buzina do Boa Esperança ia se distanciando dos meus ouvidos, trazendo calmaria e silencio ao lugar.
A noite estava linda, muitas estrelas e o quarto crescente flutuando no céu. Esse foi mais um privilégio que tive na minha vida de professor itinerante: ver a noite interiorana com meus próprios olhos, uma noite selvagem e virgem, toda original em sua beleza única, indescritível, que fazia com que a noite parecesse mais enegrecida, uma escuridão que contrastava com o brilho das estrelas, milhares de estrelas a piscar no céu. Uma noite perfeita para casais de namorados, ao som da viola de algum cantador, entoando uma bela serenata.
Durante a noite, por volta das três da madrugada, ouvi batidas na janela do meu quarto. No início, não liguei, mas, depois, as batidas foram ficando cada vez mais fortes. Eu quis acreditar que era apenas vento forte. Liguei o gravador que estava bem próximo da cabeceira da cama e aumentei um pouco o volume do som. Depois de alguns instantes, nova batida na janela.
- Bam... Bam...
Parecia que queriam arrancar as tábuas da janela. Pensei em mil coisas: visagem, ladrão. Mas ladrão não faria todo aquele barulho sabendo que tinha gente na casa. Não, não podia ser ladrão. Então pensei: se não era ladrão e nem vento, só podia ser.... Visagem?
A casa estava toda na escuridão, pois, como eu disse anteriormente, lá, também, não havia energia elétrica, a não ser um gerador que era ligado das seis da tarde até às onze da noite, tempo suficiente para fechar a escola e professores e funcionários correrem para suas casas, uma vez que as aulas terminavam às dez e meia da noite. No meu quarto havia uma lamparina a querosene que iluminava parte do ambiente, mas a minha imaginação já estava a mil por hora, rodeada de elementos sobrenaturais. Peguei o revolver trinta e oito que levava comigo e o coloquei debaixo do travesseiro. Ao mesmo tempo, aumentei, mais uma vez, o volume da música que tocava no gravador. Lembro-me, claramente, uma das canções que ouvi antes de adormecer. Era a canção Fim de reinado, de Martinho da Vila, que diz assim:
Estás bonita
Nesse alto de colina
Tão feminina
Como a brisa da manhã
Por toda a noite
Dominaste o firmamento
E um punhado de estrelas
Ajudou-te a governar
Mas, eu lamento
Teu reinado já termina
E essa colina
Tá aí pra te abrigar
Vá pra outras terras
Minha formosa Jaci
Ou te escondes atrás da serra
Porque o Rei já vem aí...
Fiquei nesse sobressalto até quando o dia começou a clarear. Então, não aguentando mais de tanto sono, adormeci. Sobrevivi àquela noite macabra.
É necessário fazer um parêntese aqui sobre a história do revolver. Acontece que eu, antes de me formar em Letras e Artes, já fazia parte da polícia cientifica, ocupando o cargo de papiloscopista e, quando comecei a dar aulas pelo SOME, nos fins de semana, realizava operação documento (emissão de carteiras de identidade civil) nas localidades em que me encontrava, com carta de autorização do Instituto de Identificação que eu apresentava à autoridade local, quer seja à prefeitura ou à autoridade policial.
Pois bem, dada essa informação, retornemos à história. No dia seguinte, sábado pela manhã, atualizei alguns textos, corrigi redações e fui ao igarapé que ficava a uns cento e cinquenta metros de casa. Lá, havia alguns banhistas aproveitando o dia ensolarado pra matar o calor.
O resto do dia foi monótono e solitário, parecendo que corria lentamente com os passos de um bicho preguiça. Aos poucos, a tarde ia se recolhendo, e o rei Guaraci, se despedia de mim, lá, longe, por entre os montes, como se me dissesse:
- Não se preocupe, não tenha medo, amanhã bem cedinho eu estarei aqui de novo!
Ainda, por mais alguns momentos, era possível ver a paisagem panorâmica no horizonte. As poéticas imagens que o Guaraci deixava reluzir antes de se esconder por entre as árvores da serra do Piriá. Como não admira-las. Como não se vislumbrar com aquilo que parecia algo sobrenatural. Um tipo de poesia impossível de se descrever, embora eu tenha tentado. Peguei papel e caneta e pus-me a escrever ou descrever a poesia daquele lugar, que me invadia os recantos e os labirintos d’alma. Oh, sim! A poesia está solta, livre na natureza, no mundo real e palpável. Está diante de meus olhos, desnudada, simples e, ao mesmo tempo, humilde e glamorosa. Aquele era o momento, e, ela, parecia que me dizia:
- Escreva, porque esse momento não tornará a se repetir! O tempo não volta e as coisas envelhecem, perdem o seu vigor e a sua originalidade. Escreva a vida em toda a sua plenitude.
E eu escrevia e escrevia e escrevia... Finalmente, a noite começou o seu processo de ressurreição, e as imagens da Serra do Piriá, naquela localidade de Açaiteua, já se apagavam, não podiam mais ser vistas. Do batente da casa dos professores, sentado, eu apreciava o nascimento da Jaci, que clareava a noite com suas milhares de súditas, estrelas de todas as formas, com brilhos intensos, umas mais distantes, outras mais próximas, umas maiores, outras menores, e, no meio de todo aquele emaranhado de luzes, tive a impressão de poder vislumbrar as constelações do Cruzeiro do Sul, de Andrômeda, da Ursa Maior, da Ursa Menor, do Cão Maior, do Cão Menor, do Pégaso, da Fénix, de Órion, todas esplendidas. Ah! Eu também vi a famosa Estrela D’alva, a estrelinha dos enfeites de natal que costumávamos construir na escola com cartolina ou isopor e papel laminado, e a pendurávamos na parece da sala de casa. Ela estava ali, com sua cauda imensa, que se arrastava pelo firmamento afora. Uma estrela cadente correu, de repente, cruzando o espaço sideral, e eu fiz um pedido – todo mundo faz – que ficou guardado no íntimo da minh’alma, que se regozijava com a apreciação de toda aquela beleza interplanetária.
Quantas pessoas não deviam estar fazendo o mesmo que eu, naquele momento, em algum lugar do planeta. Casais deitados na grama do quintal, ou no alto de um monte, amigos, familiares, com telescópio, admirando as belezas da criação divina. Sim, um cenário tão perfeito não pode ter surgido do acaso, pois foi feito de forma organizada, com leis que sustentam os planetas e os astros no vazio do espaço; leis que impedem que nós sejamos puxados para o espaço sideral; leis que fazem com que o planeta gire em volta de si mesmo com uma velocidade em torno de 1666 km/h, e em torno do sol com uma velocidade de 107 mil km/h; leis que retêm o sol fixo, em seu lugar, e que não permitem que ele se aproxime nem se distancie da Terra apenas alguns graus, porque isso, ou aqueceria a Terra demais, ou a esfriaria demais. De qualquer modo, toda vida no planeta morreria. Ah! São as leis físicas que proporcionam esse milagre? Sim, de certa maneira, mas quem criou as leis físicas? Elas não podem ter surgido do acaso. Há que ter um autor, uma mão poderosa, com certeza, que sustenta esse universo. O cristão chama-o pelo nome de Deus. Esse, que é o grande arquiteto do universo, o engenheiro insuperável, o primeiro dos poetas, sublime nas suas criações, que fazem com que os olhares dos poetas humanos, nas suas pinceladas, recriem a poesia que já existia, cujo material, que nos serve de inspiração, foi-nos dado com grande fartura.
Finalmente, entrei na casa, fechei a porta, fui para a cozinha preparar alguma coisa para comer. Enquanto estava ali, na mesa, me alimentando, podia ouvir o canto das cigarras do lado de fora. Era o único som que chegava a mim. Fora isso, tudo era silêncio, como se tivesse sido decretada uma lei marcial, proibindo qualquer tipo de barulho ou pessoas transitando pelas ruas, após as oito da noite. Instantes depois, tomei um banho e fui ler um pouco. Lia e escrevia. Alguns de meus poemas e contos nasceram em momentos assim, em plena solidão, paz e silêncio. Só eu, a casa dos professores e a natureza. Aquele ambiente me empurrava, automaticamente, em direção ao papel e à caneta. A mente, fértil em imaginação, me inspirava a registrar todo o entorno daquele ambiente, em palavras poéticas, como se sondasse todo o interior de minh’alma, sem que nada pudesse escapar.
Quem pode descrever o estado d’alma de um poeta? Quem se aventura a dizê-lo? Cada poeta tem o seu próprio caráter e personalidade, a sua história de vida, suas experiências, angústias, frustrações, alegrias, momentos de prazeres, vitórias e derrotas. Já dizia o Fernando Pessoa: “O poeta é um fingidor/Finge tão completamente/que chega a fingir que é dor/A dor que deveras sente”. O poeta, às vezes, sem dar por si, carrega, em seus ombros, as dores e as alegrias do mundo. E por quê? Porque o poeta é um pensador que consegue enxergar no mundo físico o invisível; que consegue ouvir em meio a tanto barulho a canção muda. Um pensador também carrega em si uma desilusão, pois não consegue enxergar no mundo apenas as belas cores do arco-íris, mas enxerga, também, a fotografia em preto e branco, descolorida, sem a beleza da luz. Não como o ser comum enxerga, mas de tal forma que o preto e o branco lhe ferem a alma que há dentro da própria alma.
A voz de Cecília Meireles também ecoou dizendo: “Eu canto porque o instante existe/E a minha vida está completa/Não sou alegre nem sou triste/Sou poeta”. Que contraste entre forças antagônicas (alegre/triste). Então, o poeta é algo entre a alegria e a tristeza, um pouco de cada ou nada de nada. O instante que existe – pra ela – pode trazer tristeza ou alegria, frustração ou contentamento. É assim com o ser humano. E é assim também com o poeta que, por um instante, pode ter a felicidade em suas mãos, mas no instante seguinte, os sofrimentos do mundo podem arrancar-lhe todo o sorriso do rosto. Então, vivemos de detalhes, de pequenas porções que a vida nos dá. E, no final das contas, temos que ter sabedoria para administra-las. Por conta disso, eu me sinto como um poeta, que, acima de tudo, nunca foi um super-herói invencível, como os das revistas de gibis, nunca deixei de ser humano, e que tenho meus momentos de alegrias e de frustrações, como qualquer outra pessoa, como qualquer um mortal.
A energia do gerador foi-se embora, tudo ficou escuro, pois Já passavam das dez da noite. Nos finais de semana, quando não tinha aula, o gerador era desligado mais cedo. Peguei imediatamente o fósforo e acendi a lamparina com querosene; a luz voltou; não uma luz forte como a do gerador. Era uma luz tênue que clareava parte do ambiente do quarto, que continha uma cama de solteiro, uma mesinha e um guarda roupa com duas portas. Coloquei a lamparina sobre a mesinha, perto do gravador, e arrumei-me para deitar.
Adormeci ao som de uma bela música romântica dos anos 90, A beleza da Rosa, de José Ribeiro. Poetas também amam, também ouvem músicas românticas, além da MPB raiz. Naquele tempo, música romântica era música romântica. E parece que as novas gerações de compositores dos anos dois mil e dez pra cá estão perdendo, gradativamente, a inspiração, com exceção, é claro, de alguns bons compositores que fizeram belas canções. Os poetas da música popular brasileira estão morrendo e parece que a qualidade das composições atuais não está sendo reinventada pra melhor. Será que isso é mania de saudosista? Será que é pura nostalgia de quem já passou dos cinquenta e não consegue ver muita beleza nas canções atuais? Música tem que conter poesia, poesia tem que conter musicalidade, como nas canções de gesta de Provença e do trovadorismo português.
Eu fico falando e narrando coisas, e me pego viajando por idos da Idade Média, por castelos de Notinghan e pelas florestas de Robin Hood. Tenho que voltar ao presente. É preciso. Se não, como esta história se encerrará? Pois bem, voltemos ao presente. Num determinado momento, nem sei se estava acordado ou sonhando. Sei que ouvi batidas que vinham da porta uma, duas, três vezes, com insistência. As batidas pareciam distantes, mas ficavam cada vez mais fortes:
- Toc-toc-toc... Toc-toc-toc...
Despertei, de repente, num salto. Olhei o relógio. Eram Uma e meia da madrugada. Ouvi barulho de motor de carro lá fora e as batidas insistentes na porta. Saí do quarto e fui para a sala. Perguntei quem era. Nenhuma resposta. Perguntei novamente. Nenhuma resposta. Completo silêncio. Quando bateram novamente, eu prontamente respondi:
- Se não dizer quem é eu vou atirar! – Eu estava com o trinta e oito na mão, pois, até então, eu não tinha a mínima ideia de quem poderia bater à minha porta àquela hora da madruga. Não me vinha ninguém à mente. O professor Tós e a professora Aivlis estavam em Belém e só iriam chegar em Açaiteua por volta das duas da tarde de segunda-feira. Na localidade, eu não conhecia ninguém que tivesse tamanha intimidade de bater na minha porta àquela hora da madrugada.
De repente, ouvi alguém dizer lá fora, parecia a voz do condutor do veículo:
- É melhor a senhora falar logo quem é. Ele disse que tá armado e pode atirar. É perigoso.
Aí, então, ouvi uma voz conhecida:
- Sou eu, Emos! A Zete!
- Zete? O que estás fazendo aqui a essa hora da manhã?
- Abre a porta, depois te conto!
Abri a porta e ela entrou. Era a minha esposa que tinha ido pra Açaiteua com meu filho, o pequeno Biel, a fim de me fazer uma surpresa. Passado o susto e as explicações, fomos, finalmente, dormir. Confesso que foi uma bela surpresa. Não me senti mais tão só, nem me preocupei mais com os fantasmas e visagens que rondavam aquela casa, querendo me assombrar.
A minha esposa ainda me surpreenderia muitas outras vezes, com sua chegada inesperada em outras localidades do Marajó, da Pará-Maranhão, da Transamazônica. Essas são outras linhas e outros papéis em branco pra serem escritos, porque essa história não termina aqui. A história de cada um de nós nunca termina, enquanto houver chão pra pisar.
*O autor do texto é escritor, poeta e ex professor do Sistema de Organização Modular de Ensino - SOME(SEDUC/PA).