Sabe! Nessas minhas andanças pelo
interior do estado do Pará como professor do modular – Modular não! “SOME”, que
quer dizer Sistema de Organização Modular de Ensino – eu já me deparei com as
mais variadas situações. Situações essas, por vezes alegres, outras vezes
tristes, inusitadas, inesperadas, mas também, às vezes, esperadas. E essa que
eu vou compartilhar com vocês foi realmente uma situação inesperada e triste,
muito triste.
Não sei se conseguiria estender o
significado da palavra “triste” pra você que me lê agora, nesse instante. A
palavra parece adquirir um sentido abstrato, mas o sentimento é concreto, e de
toneladas de concreto. Tristeza nunca foi sinônimo de felicidade, de alegria,
pois ela está presente na separação, na despedida, na morte. Sim, na morte,
essa palavra que tentamos evitar e até esquecer, porque ela representa o “nunca
mais”. Imagine nunca mais ver o rosto de alguém que tanto amas! Nunca mais
ouvir suas gargalhadas, seus conselhos, suas piadas; alguém que era a sua
companhia do dia-a-dia, pau pra toda obra... E, de repente, você nunca mais irá
tê-la ao seu lado. Imaginou?
Quando contamos a história de
alguém que passou pela tragédia da morte, é humanamente impossível descrever
sua dor, porque a dor é dele, está no seu íntimo, e nós, como seres humanos,
parece que estamos desaprendendo princípios básicos da raça humana, como: a
emoção, o amor ao próximo, a fraternidade, a solidariedade, o querer o bem do
outro. Parece que nos tornamos personagens como que do filme “O exterminador do
futuro”, cujos robôs, avançados em tecnologia, pretendem aniquilar a raça
humana. Mas, pasmem, que, até ali, um robô teve uma escolha. Ele aprendeu, em contato
com um menino, o significado de “amizade”, “lealdade”, “família”. Parece que o
filme está querendo lembrar a gente de alguma coisa que, talvez, tenhamos
esquecido num passado recente.
Bem, você percebeu que eu falei,
falei e falei e não consegui passar o sentimento que eu quero expressar:
tristeza, pesar. Isso porque a tristeza falada, não é a mesma tristeza vivida.
Mas, quem sabe, ao se apoderar do enredo da história, você consiga se
emocionar; quem sabe até uma lágrima incontida escorregue pelo seu rosto. Aí eu
começo a acreditar mais no ser humano, como ser humano.
Era exatamente o ano de 1993. Eu
e minha colega de equipe, a professora Mara, fomos enviados para o distrito de
Açaiteua, no interior de Viseu. Sim, Viseu de Quintino da Silva Lira, o gatilheiro
Quintino, também chamado de “o Robin Hood da Amazônia”, pois ele foi o líder de
um movimento armado contra a mineradora CIDAPAR, quando esta foi autorizada
pelo governo do estado, em conjunto com o governo federal, a explorar uma área
na região nordeste do Pará, em fins dos anos 1970, em pleno regime militar,
desapropriada pelo governo estadual. Ele e mais cem homens resistiram à
desapropriação por três anos e, após a mineradora contabilizar derrota após
derrota, desistiu do projeto de exploração e devolveu as terras aos posseiros,
seus legítimos donos. Foi uma vitória, não há dúvida, mas Quintino não iria
usufruir do privilégio de voltar às suas terras e ali morar, e viver em paz. Em
pouco tempo, seu nome passou a fazer parte da lista de homens assassinados por
questão de terra no Brasil. Foi morto pelas forças de segurança do Estado do
Pará, pela polícia paraense, sob as ordens governo paraense, no dia 4 de
janeiro de 1985. Pra não haver tumulto nem tentativa de rebelião pelos seus
companheiros, teve seu corpo enterrado a 180 km distantes de sua comunidade.
Mas os amigos de luta foram em busca de seu corpo e o carregaram num cortejo
fúnebre pelos vários povoados, como uma justa homenagem àquele que enfrentou
grandes latifundiários e a empresa mineradora CIDAPAR.
Sim, fomos pra Açaiteua, um
pequeno distrito afastado de Viseu. A viagem era longa e cansativa. O ônibus da
Boa Esperança saia do terminal rodoviário de Belém por volta das 9 horas da
manhã e chegávamos ao município de Bragança lá pelas 13 horas. Ali, embarcavam
algumas pessoas que iam pra Açaiteua e povoados próximos. Homens, mulheres,
crianças, pessoas idosas, o ônibus ficava lotado com gente viajando em pé.
Embarcavam também, sacas de farinha e mantimentos diversos. Acontecia de tudo
numa viagem dessas. Era vendedor que entrava pra vender picolé, chope de
frutas, rosquinha, bolinho, pamonha, salgadinho, água, refrigerante, enfim,
cada um tentando sobreviver do jeito que dava.
Um dia, numa viagem dessas, em
outro momento, com uma outra equipe, viajando com a professora Marli que
ministrava as disciplinas Língua Portuguesa e Língua Inglesa, eu sentei no lado
do corredor e a professora Marli ao lado da janela. Um garotinho havia comido
tanta besteira que, quando o ônibus começou a sacolejar, ele sentiu enjoo e a
mãe tratou de colocar a cabeça dele pro lado de fora da janela, e ele vomitou,
vomitou e vomitou, parecia que ia colocar as tripas pra fora, enquanto a mãe
passava as mãos nas costas do garoto, como que se, assim, pudesse fazer passar
o mal estar. O vento, provocado pela velocidade do ônibus em movimento, jogou o
vômito direto na janela da professora Marli, sujando seu braço e parte do
ombro. É claro que ela ficou indignada, reclamou muito, mas o máximo que pôde
fazer foi puxar um lenço e tratar de se limpar, pois o ônibus estava lotado e,
devido à hora, fazia muito calor e a poeira alaranjada, levantada na estrada de
piçarra, tornava a viagem bastante desconfortável. Assim, todo mundo só pensava
em chegar logo em seu destino.
Voltando à viagem com a
professora Mara, depois que saímos de Bragança rumo a Açaiteua, o relógio já
contava Uma hora e trinta e cinco minutos da tarde de um sol escaldante. Essa
viagem foi relativamente tranquila. Chegamos ao distrito de Açaiteua lá pelas
três e meia da tarde. O lugar era bem simples, um pequeno povoado com uma rua
principal de piçarra, uma escola municipal pintada de um azul claro logo na
entrada da localidade, com algumas salas de aula e um terreno espaçoso dentro
dos seus limites. Havia casas de um lado e de outro, casas simples com pessoas
simples. Já quase no final da rua principal, podia-se avistar a única pracinha
do lugar, com uma igrejinha católica tomando conta do cenário, cujo padre –
assim eu soube depois – raramente aparecia para celebrar uma missa.
Desembarcamos ali, naquele ponto, bem em frente àquela pracinha, donde pude
avistar, do outro lado dela, uma pequena escola estadual com, no máximo, quatro
salas de aula. Percebi que, ali, seria o nosso local de trabalho por dois
meses.
Pegamos nossa bagagem e
perguntamos para alguns moradores que passavam onde morava a professora Dária.
Imediatamente apontaram para uma casa no final da praça, que dava para o lado
da igreja. Descemos a rua e chegamos a casa, batemos palmas e logo alguém veio
atender. Era a professora Dária, que nos recebeu com muita cordialidade. Estava
já nos esperando junto com o Balão, vice-prefeito de Viseu, que nos colocou a
par das dificuldades que a prefeitura estava enfrentado para o funcionamento do
Sistema Modular em seus distritos. Explicou-nos que, provisoriamente, iríamos
morar na casa da professora Dária, já que não disponibilizavam ainda de uma
casa própria que abrigasse os professores. Naquele momento, ficamos sabendo que
não havia casa para os professores; que teríamos que conviver diariamente com a
família da professora Dária; que não teríamos privacidade nem local adequado
para colocar os materiais de aula, livros, estêncil, álcool, nem ambiente para
preparar aulas ou receber alunos, e que a Professora Mara iria ocupar um quarto
e eu iria dormir em uma rede num canto perto da sala.
Tudo bem, tiramos de letra.
Conhecemos o pai da Dária, chamado por todos como seu Biléu, homem de uns
setenta anos, alto, acostumado com o trabalho duro da roça, homem simples, de
poucas palavras. Um dia, tomou um porre de cachaça e saiu com o terçado na mão
lambando tudo que encontrava pela frente, querendo dar uma coça em visagem. E,
assim, entre uma emoção e outra, os dias foram passando, talvez mais rápido do
que poderíamos imaginar.
Um dia, lembro bem, eram por
volta das cinco da manhã quando alguém bateu à porta da casa insistentemente.
Todos acordaram e estranharam também, devido ainda ser madrugada. O ditado
popular diz que quando você recebe telefonema tarde da noite é porque algo
sério aconteceu e a notícia não é boa. A professora Dária correu para a porta
já demonstrando preocupação com o que poderia ser e quem estaria batendo à
porta da sua casa àquela hora da noite. Ao abri-la, deparou-se com uma
garotinha, filha da sua comadre, que eu vou chamar pelo nome fictício de
Aninha. Abro um parêntese aqui para explicar que alguns nomes são fictícios,
uma vez que este fato aconteceu a vinte e oito anos, e alguns nomes reais foram
esquecidos. Dária olhou para Aninha e perguntou o que estava acontecendo. A
menina foi logo falando que a mãe pediu pra chamar sua comadre porque a filha
mais nova estava muito doente.
Saímos todos pra casa da comadre
de Dária, a quem vou chamar de Célia. Chegando lá, reparei no cenário estampado
diante de nossos olhos: uma mãe, ainda com os cabelos desarrumados, um rosto
marcado pelo sofrimento e desespero, sentada, numa cadeira de embalo, com a
pequena filha no colo, levantada até o peito, como se quisesse protege-la,
guarda-la da dor, da doença, da presença da morte. As lágrimas incontidas
daquela mãe quebrantavam os corações dos amigos e vizinhos presentes, que
pareciam paralisados sem saber o que fazer. Triste, muito triste era ver o
desespero do pai que dava voltas na sala, de um lado pra outro, completamente
desnorteado.
Dária perguntou a sua comadre o
que tinha acontecido e ela respondeu que a menina estava com febre desde as
primeiras horas da noite, mas depois foi piorando e, já pela madrugada a menina
não reagia, estava completamente mole. O genro de Célia, que era uma espécie de
curandeiro da comunidade, pois ele costumava tratar as pessoas doentes com
plantas medicinais, achava que era meningite. Ele até que fez algumas
tentativas de tratar a menina com remédios caseiros, mas não obteve resultado
positivo e a menina continuou piorando.
A situação foi ficando mais
tensa, mais desesperadora e, num determinado instante, algumas pessoas
recomendaram que o pai levasse com urgência a filha até o hospital mais
próximo, que ficava em Bragança. O pai, sem entender direito o que estava
acontecendo com sua filha, porque ela, de uma hora pra outra, adoeceu tão
rápido e ficou tão mal de saúde, dava voltas na sala, dizendo em voz alta que,
se levasse a filha pra Bragança e ela chegasse morta ou morresse lá, ele não
iria deixar que a cortassem pra fazer perícia. Ele olhava pra ela e dizia que a
filha estava morrendo, que ela não ia aguentar uma viagem até Bragança. Nessas
horas é que vemos o quanto a nossa gente do interior está desassistida; o
quanto políticas públicas sérias, feitas por pessoas sérias, são tão
importantes e podem salvar vidas.
Amanhecia o dia, o galo cantava.
Na casa de Célia, grande alvoroço, com gente entrando e saindo. Eu e Mara, ali,
inertes, sem saber o que fazer ou dizer. De repente, Célia solta um grito
angustiado dizendo que sua filha havia morrido, ela não se mexia mais, a
respiração foi ficando cada vez mais fraca, até não se ouvir mais nada. O pai
correu e pegou a menina, e colocou-a no colo, enquanto gritava: “Minha filha!
Minha filha!” Foi um momento muito triste. A criança morreu e ninguém pôde
fazer nada. Se era meningite, naquele momento, não tínhamos como saber; pelo
menos oficialmente não, mas tudo levava a crer que era.
A criança foi enterrada ali, no
pequeno cemitério de Açaiteua, perto de seus pais, de seus parentes, na sua
terra, na terra em que havia nascido; ali nasceu, ali morreu como um anjinho.
Pouco tempo depois, eu e a professora Mara terminamos as nossas atividades
naquele lugar. Os dias eram de luto que convidavam para uma profunda reflexão
sobre o que realmente importa na vida, o que realmente tem valor para nós,
seres humanos. Deixamos a localidade com muitas lembranças boas, conhecemos
pessoas, fizemos amizades, mas também levamos conosco algumas lembranças tristes,
como a morte daquele anjinho.
Uma hora da madrugada estávamos
lá, na beira da estrada, a rua central de Açaiteua, esperando o ônibus da Boa
Esperança que ia para Belém. Aquele era o único horário e o único ônibus. Não
podíamos perdê-lo; se isso acontecesse, só no outro dia, na mesma hora. A noite
revelava muitas estrelas suspensas, e o quarto crescente da lua, clareava
parcialmente a escuridão que nos rodeava. Ninguém pra se despedir, todos
dormiam, enquanto pegávamos o ônibus e partíamos dali. O amanhecer traria um
novo dia. Desconhecido, sim! Mais um novo dia.
Prof. Carlos Alberto Prestes
(Licenciado pleno em Letras e Pedagogia, pós-graduado em
Literatura e suas Interfaces)
Ex-professor do SOME
(Língua Portuguesa, Literatura e
Redação)