segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

CRÕNICAS DO KM 74 (PARÁ-MARANHÃO)

 

CRÔNICAS DO KM 74

                     - Carlos Alberto Prestes

Ah! Como me lembro de tantas e tantas viagens feitas durante o tempo em que estive trabalhando como professor de Língua Português e de Literaturas Brasileira e Portuguesa no sistema modular de ensino, na época, um projeto de interiorização da educação pública, das séries de 1º e 2º graus, administrado pela Secretaria Estadual de Educação – SEDUC.

Tanto chão percorrido por mim e por outros professores que aceitaram essa missão de levar o 1º e 2º graus para estudantes dos mais diversos rincões do estado do Pará. Foi, sem dúvida, um período de experiências marcantes para cada professor que deixava sua família – grande parte em Belém – para passar boa parte de seu tempo com famílias que nunca havia visto antes. Desse modo, era tristeza na despedida, quando partíamos de Belém; era, também, tristeza quando nos preparávamos para deixar o município, seja lá em que parte do Pará. Na hora do adeus, os sentimentos afloravam e era impossível não derramar lágrimas.

Somos seres humanos, feitos de carne, ossos e espírito. Nossa essência se divide entre razão e sentimento, um dando equilíbrio ao outro. Por isso, não há como não fazermos parte das histórias de vida dessa gente do interior, com as quais convivemos durante dois meses por módulo; cada módulo correspondia a um período de dois meses, mas oito meses no total de módulos por ano, que fechava um circuito com quatro módulos. Isso sem contar com as reposições de aula que duravam, geralmente, um mês. E, assim, íamos, de módulo em módulo, conhecendo os municípios do interior, os distritos, as comunidades, os moradores. Para uns, talvez, um período curto; para outros, o suficiente para deixar momentos eternizados na memória, sejam bons ou ruins. O certo é que passamos a fazer parte da vida de muitos desses estudantes, e eles das nossas.

Eu até tinha a minha música preferida, apropriada para esse momento de despedida da esposa. Em Belém ou no interior, Vital Farias estava sempre comigo, bem guardadinho nas entrelinhas de alguma fita K-Sete, que era a moda naquela época. A canção? Só poderia ser uma: “Ai que saudade d’ocê”. Esse baião do pé de serra, realmente, me fazia correr rios e estradas, apenas com a força do pensamento, numa busca implacável pelo aconchego da amada. Se você já ouviu essa música, irá entender perfeitamente. Eu me sentia, realmente, como aquele beija-flor invadindo a casa da namorada, dando um beijo em seu rosto, enquanto dormia, e depois saia batendo asas pela janela, rumo ao estradão.

Quantas coisas inusitadas e inesperadas aconteceram nessas viagens do modular. Quantas histórias de colegas professores chegavam até nós. Muitas vezes, já ficávamos sabendo através de alunos ou de funcionários das escolas que, você sabe né! Já ficavam esperando uma oportunidade de nos contar: “Professor, o senhor soube o que aconteceu aqui no módulo passado?”; “Vocês souberam do caso daquela professora?”; “Sabe aquela festa que teve na escola? O professor fulano saiu com a fulana...”; “O professor fulano pegou um porre que caia pela rua, todo mundo viu...”.

Uma vez – essa é a minha própria história – eu estava no Km 74 da Pará-Maranhão, com uma equipe de mais quatro professoras (não vou citar os nomes). Essa localidade era bem pequena, com casas de um e outro lado da rodovia, algumas poucas ruas transversais, alguns poucos comércios, mas os costumes lembravam um pouco essas regiões de fazenda, de gado, de queijo caseiro, de gente que gosta de andar com chapéu de vaqueiro. Soube até que, por ali, passou o famoso gatilheiro Quintino, que travou uma verdadeira guerra contra uma mineradora chamada CIDAPAR, que tinha o aval de órgãos públicos e de políticos para explorar a região em que morava a família de Quintino e muitas outras famílias de pessoas simples, que eram chamadas de posseiros. Eu também ouvi falar de que um vizinho meu, marido de uma aluna minha, era pistoleiro, e que, quando ele sumia, era pra fazer algum serviço encomendado.

Logo descobri que, ali, não havia sequer um posto de saúde que pudesse atender aquela gente. Quando alguém adoecia, um aluno meu que tinha uma Brasília amarela, era quem costumava levar os doentes até o hospital de Capanema. Isso acontecia durante toda a semana. Essa Brasília era quem quebrava o galho, era a ambulância do Km 74, e esse aluno recebia um pagamento pelos serviços prestados. Nada era de graça não. Era um serviço que não tinha hora pra começar nem pra terminar. Às vezes, ele até perdia aula.

Esse aluno da “ambulância” namorava a filha do vereador do distrito, que também era minha aluna. Um dia, esse vereador ficou sabendo que eu era papiloscopista do Instituto de Identificação do Pará, e que nos períodos em que não estava exercendo atividades educacionais, principalmente nos finais de semana, eu trabalhava tirando carteiras de identidade, gratuitamente, das pessoas daquele distrito, tão carentes dessa documentação. E isso acontecia em todos os lugares por onde eu passava ministrando aulas.

Um dia, esse vereador me convidou para almoçar em sua casa, com sua família. Era um final de semana, um domingo de sol. Tinha boa reputação o homem, era considerado um bom pai de família. E também era o único representante daquele distrito na Câmara de Viseu. E pensar que a comarca de Viseu era tão grande assim. Se andássemos alguns quilômetros pra frente, chegaríamos ao rio Gurupi, fronteira entre Pará e Maranhão. As linhas de ônibus que percorriam aquele trecho eram praticamente interestaduais, mas duas delas me vêm à memória: a linha da Boa Esperança e a Continental. Dessas duas, tenho recordações interessantes.

Uma vez, indo de Belém para o Km 74, na linha da Boa Esperança, em determinado trecho da rodovia, um passageiro pediu ao motorista que parasse o ônibus logo mais adiante, pois iria descer. O motorista fez que não ouviu e continuou o trajeto sem dar atenção ao passageiro. O homem, quando viu que o ônibus iria passar direto, pediu novamente ao motorista que parasse o coletivo. Mas este respondeu ao passageiro que só iria parar nas paradas oficiais da empresa; que a empresa proibia parar na estrada e a próxima parada estava ainda alguns minutos dali. Bem, o passageiro não contou mais conversa. Disse que estava acostumado a descer sempre na estrada, no trecho que ficava perto de sua casa; que era a primeira vez que alguém não queria parar pra ele. Então, já impaciente, principalmente ao ver que sua parada iria passar e a indiferença do motorista, puxou um revolver calibre 38 da cintura e apontou para o motorista, perguntando em voz alta se ele iria parar ou não aquele ônibus. Todo aquele ar de arrogância desapareceu na mesma hora do rosto do condutor do veículo. Ele, simplesmente, disse: “- calma, calma, que eu já vou abrir!” O ônibus parou bruscamente, a porta se abriu, fazendo aquele característico som de ar saindo, e o passageiro desceu, não sem dizer ao motorista assustado que ele deveria ter mais educação com as pessoas.

Quem costumava viajar nos ônibus dessa empresa, com certeza deve lembrar-se de alguns problemas que tiveram ou que presenciaram com motoristas e cobradores. A verdade é que, enquanto as outras linhas de ônibus paravam para descer ou subir passageiro em qualquer trecho da Pará-Maranhão, facilitando a vida de quem morava nas imediações, o da Boa Esperança só queria parar nas paradas determinadas pela empresa, causando grandes problemas para os moradores da região. E o curioso é que só avisavam quando alguém queria descer.

Já a linha do ônibus Continental era mais popular; também era um ônibus mais simples; geralmente, viajávamos com as janelas abertas pra economizar ar condicionado, ou porque não tinha mesmo. Lembro bem dele: era um ônibus da cor azul e branco, listas azuis e brancas na forma horizontal. O fato de gostarem de viajar nele era, por um lado, em razão do preço mais acessível, e, também, porque não tinham problema nenhum em parar em qualquer trecho da rodovia, pra subir ou descer passageiro. Talvez, por essa facilidade, esses ônibus costumava ir sempre com bastante passageiros, principalmente maranhense, que levavam de tudo, desde sacas de farinha, açaí, mantimentos, e, com isso, atravessavam todos os dias a rodovia, rumo ao Gurupi.

Um dia, final de semana, peguei o Continental, ali, no Km 74, indo pra Belém resolver problemas familiares, depois de esperar algum tempo à beira da estrada. Tendo-se passado algum tempo, um soldado da Polícia Militar embarcou no ônibus e sentou-se um pouco à minha frente. O coletivo não estava lotado e nem todos os lugares estavam ocupados. A viagem transcorria tranquilamente, enquanto eu olhava pela janela a paisagem, onde tudo se movia rapidamente, como flash. As pessoas iam ficando para trás, a paisagem ia ficando para trás, tudo ia ficando para trás, enquanto nós avançávamos estrada afora.

Toda essa paz, essa reflexão desapareceu quando o cobrador começou a andar pelo corredor do ônibus, indo de poltrona em poltrona, cobrar a passagem. Quando se viu de frente pro soldado, um rapaz aparentemente novo e com jeito pacato, o cobrador pediu a sua passagem. O rapaz imediatamente puxou a carteira policial e disse ao cobrador que tinha direito à passagem gratuita, pois estava fardado e indo pegar plantão. Mas o cobrador não quis saber e insistiu que ele pagasse a passagem. Começou, ali, um bate boca entre os dois, e o cobrador foi até o motorista contar o que estava acontecendo. Este, ao saber do ocorrido, dirigiu o ônibus até um posto da polícia rodoviária federal, onde parou o coletivo, contou o ocorrido e pediu que os policiais rodoviários retirassem o soldado militar do ônibus, pois ele se recusava a pagar a passagem.

Não sei como aqueles policiais rodoviários federais atenderam a um pedido absurdo do motorista, pois os policiais militares tinham direito à gratuidade nos ônibus quando fardados e em serviço. Mas foi o que aconteceu. Aqueles policiais rodoviários federais, de farda marrom clara, cheios de soberba, talvez querendo mostrar sua autoridade, fizeram sinal para que o jovem soldado da polícia estadual descesse imediatamente do coletivo. O rapaz, talvez se sentindo impotente naquela hora, sozinho, levantou-se da sua poltrona e começou a andar em direção da porta de saída, desceu os degraus que davam para fora e pisou no chão, fora do ônibus.

No coletivo, todo mundo apreensivo por causa da injustiça e da vergonha que estavam fazendo aquele jovem soldado passar. Mas, de repente. Toda boa história tem sempre um “de repente”. De repente, alguém colocou o rosto pra fora da janela e, com autoridade, falou com voz de comando ao jovem soldado: “Soldado!” O rapaz olhou na direção de quem lhe chamava, todos olharam, inclusive os policiais rodoviários. E, novamente, ouviu-se a voz dizer: “Soldado! Entra no ônibus!”

O rapaz prontamente atendeu à ordem de comando e voltou para o ônibus. Os policiais rodoviários, meio que sem entender direito, ficaram mudos, inertes, sem ação; o motorista, mudo; o cobrador, mudo, mas os passageiros aplaudiram a intervenção daquele policial militar que, certamente, era de alta patente. Assim, a viagem prosseguiu tranquilamente, até que chegamos a Capanema, onde, aquele policial militar de alta patente, deu voz de prisão ao motorista e ao cobrador do ônibus, por desacato à autoridade e por tentarem humilhar um agente da lei.

Coisas que acontecem no modular. Coisas que ficam guardadas, aparentemente esquecidas no passado, mas que fazem parte de nós, de um ciclo de nossas vidas, e que merecem ser lembradas, imortalizadas através da escrita de páginas e páginas, que viram romances, que viram contos, crônicas e poemas, pesquisas que viram artigos, que viram livros. E os livros, quando publicados, devem chegar às mãos do culto e do inculto, do professor e do aluno, de todo aquele que acredita que a educação é o pilar da sociedade. Assim, os livros vão mostrar o sistema modular por dentro, suas histórias, sua filosofia, sua missão, aventuras, desventuras, vitórias e perdas. Os livros vão mostrar quem é o professor que deixa sua família na cidade e se larga pro interior; um professor de verdade, feito de carne e osso, que sente saudade, que chora quando tem que chorar, que se alegra e dá gargalhadas quando o momento é de comemoração, que ensina e aprende porque sabe que o conhecimento é uma troca de informações, de valores, de princípios. E o professor, como um mestre, deve estar ao alcance de tudo isso; e isso deve estar impregnado nas suas ações, atitudes, para que, assim, os seus discípulos, possam ser impregnados também pelo que há de melhor que a educação possa oferecer. Os livros também vão mostrar quem é o aluno e a família do aluno, e a comunidade do aluno. Os livros vão tirar eles do anonimato, da invisibilidade, porque eles é que são o tema central de nosso trabalho, da existência do SOME.

Enfim, todos esses pequenos relatos fazem parte, apenas, do distrito do Km 74. Só por aí, imaginem quanta coisa há pra contar das lembranças de tantos professores que passaram pelo modular.

Ah! Lembram do vereador, pai de minha aluna? Ele queria minha permissão para divulgar na comunidade que as carteiras de identidade estavam sendo tiradas a pedido dele, pois isso o ajudaria na sua reeleição. Agora, já sabem o motivo do convite para o almoço. Pois bem, tempos depois – acho que se passaram uns quatro ou cinco anos – eu encontrei com aquele meu aluno da Brasília que levava doentes pra Capanema. Encontrei-o no hospital Saúde da Mulher, quando fui pegar um exame de ultrassonografia da minha esposa que estava, naquele momento, se submetendo a um parto cesariano na clínica do bebê. E esse meu aluno estava acompanhado da filha do vereador. Eles me disseram com um sorriso largo que estavam casados já havia um ano, e que foram até ali, no hospital Saúde da Mulher, buscar alguns exames. Que feliz coincidência. Também fiquei sabendo que ele, agora, era o novo vereador que representava o distrito do Km 74.

Também quero dizer que a escola, pequena escola, ficava às margens da rodovia, com pouco mais de cinco salas de aula e uma secretaria. A casa dos professores situava-se a uns trezentos metros da escola, e, dela, tenho vagas lembranças: simples, com pintura branca bastante desgastada, um pequeno pátio que dava para o lado direito da casa apenas, uma sala que se estendia até a cozinha; não havia divisão de quartos, todos dormiam em redes e em uma cama de solteiro que ficava no primeiro compartimento da sala; havia um sofá e uma mesa de madeira na cozinha com quatro cadeiras; o banheiro também era de madeira e ficava do lado de fora da casa, no quintal.

Foi lá, no Km 74, que o gerador roncou, roncou e parou. Esse mesmo gerador que eu citei no poema “Uma canção para o SOME”. Naquele tempo – ainda não havia o programa “luz para todos” do governo federal – a maior parte dos municípios do interior do estado, não tinha luz elétrica, funcionavam à base de motor que gerava energia para a comunidade. Mas o custo era alto, por isso, o motor era ligado às 18h e desligado às 23h. Nesse meio tempo, as donas de casa tratavam de botar pra funcionar geladeira, liquidificador, rádio, mas principalmente a televisão, pois o gerador era ligado bem na hora em que começava a novela das seis da tarde.

Para quem tem lá os seus vinte e poucos anos, parece que estou falando de tempos distantes, longínquos, tempos medievais, mas isso aconteceu acerca de três décadas, talvez duas décadas e meia. E, durante esse período, evoluímos da máquina datilográfica para o computador; do estêncil com mimeógrafo para a xerox ou copiadora, ou impressora; do telefone com fio para o sem fio; do orelhão com fichas telefônicas para o cartãozinho, e desse para o celular.

Tudo isso vivi. Toda essa mudança de hábitos, de costumes, de tecnologia. Às vezes, fico a pensar quantas vezes me meti em fila pra acessar as cabines telefônicas da Telepará em algum município do interior – Gurupá, Uruará, Terra Alta, etc. – querendo saber notícias de casa. Era sim, uma comunicação muito valiosa, um contato que valia a pena esperar na fila.

Um dia, não lembro o ano, talvez 1997 ou 1998, era final de aula e os alunos programaram um passeio a uma localidade próxima, cerca de 10 km, onde boa parte deles morava. Lá, havia um riacho com pedras, que parecia uma cachoeira com águas límpidas e correntes. Um ônibus da prefeitura foi colocado à disposição, o mesmo ônibus escolar.

Nesse dia, minha esposa chegou de surpresa no distrito do Km 74. No dito dia do passeio. Eu a convidei para irmos juntos, mas ela se recusou, porque queria ficar comigo no distrito. Eu insisti que era a despedida dos alunos, e que era importante que fôssemos, mas ela continuou irredutível. Resumindo, eu fui com os outros professores e pedi que ela me esperasse na casa. Quando retornamos pela parte da tarde, já cheios do álcool, na carroceria de um caminhão, recebi a notícia de que minha esposa havia retornado para Belém no primeiro ônibus que passou.

Não sei o que aconteceu na minha cabeça, mas a embriaguez passou na mesma hora. Senti um aperto no coração, mas não era infarto, e sim uma sensação de perda, de que havia cometido um delito grave. Então, lembrei-me da música, daquela música sabe! Do baião do pé de serra “Ai que saudade d’ocê”, e vi que a minha trajetória, toda essa caminhada, só fazia sentido com ela, com a minha amada, porque a minha história não fazia sentido sem a personagem dela. Foi, então, que tomei a decisão – estamos sempre tendo que tomar decisões – e, naquela mesma hora, como um beija-flor, arregacei as asas e saí voando pra Belém, e não parei até encontra-la no esconderijo do nosso quarto, no último quarto da casa de minha mãe, onde, ainda, morávamos.

As aulas terminaram naquele pedaço de chão da comarca de Viseu. Hora de arrumar as malas, os livros e, mais uma vez, pegar o Continental ou o Boa Esperança, e botar o pé na estrada, mais uma vez, de volta a Belém. E isso, justamente isso, me fez lembrar de uma vez em que, num final de semana, eu, prof. Carlos Prestes, a Karina, prof.ª de artes, e a Estelita, prof.ª de Sociologia, queríamos ir pra Belém visitar a família, mas não passava um ônibus. Ficamos ali, à beira da estrada, por um bom tempo, e nada de ônibus. Até que avistamos um caminhão com algum tipo de carga, que vinha do lado do Gurupi. Era tudo ou nada; ou pegava aquela carona, ou passava o final de semana no Km 74. Fizemos sinal pedindo carona. A Karina, por ser uma mulher jovem, bonita, colocou-se logo à frente, fazendo sinal com a mão. O caminhoneiro entendeu, parou o caminhão e perguntou pra onde íamos. Dissemos que estávamos indo pra Belém. Ele disse que estava indo justamente deixar uma carga de cebola na Ceasa de Belém. Que sorte a nossa. Ele nos convidou a entrar na boleia do caminhão e seguimos viagem ouvindo música sertaneja no toca-fitas do carro, enquanto o motorista, um homem de aproximadamente quarenta anos, abria para nós – desconhecidos para ele – o livro da sua vida.

Foi uma viagem inusitada, um pouco desconfortável, é verdade, ainda mais quando se tem quatro pessoas viajando na boleia de um caminhão ouvindo música sertaneja. Mas foi divertido, uma experiência única que jamais esqueceríamos, nem eu, nem a Estelita, nem a Karina. Aquele caminhoneiro? Nunca mais o vi. Nunca mais soube se ele ainda passava com seu caminhão pela Pará-Maranhão. Mas tenho certeza que ele continua contando as suas histórias, histórias das suas andanças, que não param nunca. E não devem parar mesmo.

Hoje, estou eu aqui, escrevendo estas páginas, longe da Karina e da Estelita que, por tantos lugares, viajaram comigo. Passaram-se anos, mais de vinte anos, cada um de nós foi trilhando seus próprios caminhos, descobrindo novos mundos, novas realidades, conhecendo pessoas e lugares. Quem diria que essas coisas do dia-a-dia que aconteciam conosco, que passavam pelas nossas vidas como algo corriqueiro, tempos depois se tornariam em histórias reais contadas, crônicas, poesias, uma literatura viva de resgate de hábitos, costumes, lugares, falares simples, histórias de pessoas, pessoas simples do interior do estado do Pará. E quem melhor pra falar de tudo isso, de toda essa cultura e hábitos, e linguagens, e culinárias, e crendices, e realidades cotidianas dessa raça miscigenada que povoa o território paraense, senão aquele que a conhece, que a entende, que conviveu com ela; quem mais estaria capacitado para essa função, senão o professor do Sistema de Organização Modular de Ensino, o SOME? Sim, somente ele é capaz de escrever com realismo e verdade a respeito dos povos do interior. E por que ele? A resposta é simples: porque ele esteve lá.

 

Carlos Alberto T. Prestes (Poeta e ex-professor do SOME)

Marudá (Pará), 31 de janeiro de 2022


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