“Bem sei que nem tudo são flores, nem utopia, nem realiDAde
Pois quando se decide ser profeSSOR
Não se dá por vaidade, mas talvez por necessiDAde
De ver seu aluno de escola pública subir e ser douTOR.”
(Carlos Prestes – Canto IV, Repertório de Saberes 2)
As histórias dos heróis do Sistema de Organização Modular de Ensino – SOME, como as dos Professores Abir Arievilo e Emos, enfatizadas em algumas crônicas neste espaço eletrônico, deixam a gente divagando em torno de algumas reflexões importantes e dúvidas. Olhem só: o SOME, enquanto uma política pública que atua nos interiores do Estado do Pará, tem, do ponto de vista dos educadores que dela participam, uma importância histórico-sócio-cultural e política de grande repercussão frente às populações nas diversas regiões onde funciona e se encontra estruturado. Mas até que ponto essa política educacional é importante? A quem interessa? Outro aspecto que faz parte de nossa reflexão é saber como esses profissionais desenvolvem suas práticas educativas, e em que condições se dá, na prática, o funcionamento desta política pública.
O Estado do Pará é grande. É o segundo maior território do Brasil. Uma terra de diversidades socioculturais. Grande em extensão e enorme em problemas locais por falta de políticas públicas efetivas e adequadas à realidade de cada região. Nesta terra abençoada, encontramos uma miscigenação de raças, credos, costumes, hábitos; encontramos elementos negros, índios, pardos, mamelucos, brancos, caboclos, cafuzos e também o imigrante das terras do sul do Brasil que veio habitar no sul e sudoeste do Pará. Quem andar pela região da Transamazônica vai encontrar por lá famílias inteiras de imigrantes catarinenses, paranaenses e rio-grandenses que nunca mais voltaram para suas terras de origem. Adotaram o Pará como seu novo berço, como a sua nova terra, mesmo com tantas dificuldades enfrentadas naquele pedaço de chão, começando pela própria rodovia.
Na região do Marajó e baixo Amazonas que contam com paisagens contrastantes, onde as estradas são os rios, as vicinais são os furos, os igarapés, os braços de rios, e o transporte de mercadorias e de gente é, na maioria das vezes, feito por embarcações de grande, médio e pequeno porte, há algo em comum em relação ao sul e sudoeste: os problemas são muito parecidos entre uma região e outra, pois há falta de infraestrutura efetiva adequada à realidade de cada região, ou seja, melhoria das estradas para escoamento de mercadorias e fortalecimento do comércio local, melhoria no saneamento básico, nas redes de esgoto, no abastecimento e distribuição de água tratada compatível com o censo populacional por região, melhoria e fiscalização mais eficaz no transporte fluvial, a fim de evitar tragédias causadas por naufrágios com população excedente de passageiros e de cargas, como é comum serem noticiadas nos principais meios de comunicação do país.
E é nesse contexto que a presença de professores do Sistema de Organização Modular de ensino se torna crucial nessas regiões quase que abandonadas pelo poder público. E por que é crucial? Por que a educação faz a diferença em qualquer situação. A educação transforma o animal irracional em um ser social, interativo, relacional, assim como prepara o jovem para ocupar seu lugar na sociedade, tornando-o um profissional e um cidadão útil à sua família, ao meio, ao seu país. É assim que se desenvolve uma nação, elevando-a ao topo do progresso. Só com educação, e educação de qualidade que gere frutos, bons frutos.
E, para que isso aconteça, é preciso trabalhar no ser humano algo que, talvez, não tenhamos atentado, ou não demos o merecido valor. Estou falando do caráter que vai sendo incutido no ser humano desde os seus primeiros dias de vida. Essa educação que vai sendo aprendida pela criança no dia a dia do lar terá uma forte influência na sua conduta, no seu comportamento, nos seus valores, quer seja para o bem ou não. Por isso, é necessário trabalhar a formação do caráter desde a tenra idade, antes mesmo do primeiro ano escolar, aonde o filho vai sendo moldado – no aconchego de sua casa – nos aspectos éticos, morais e comportamentais, pelos seus primeiros educadores – os pais, entendendo-se que os pais têm como norma esses princípios para suas vidas.
Paralelamente, vem a formação intelectual, física, espiritual e emocional completando o ciclo de amadurecimento e aprendizagem do educando. O fato de alguém ter estudado em uma escola de tradição, com bons professores, ter feito mestrado e doutorado, e ter adquirido um excelente quinhão intelectual, não o impede de ser tentado a corromper-se, se o seu caráter não tiver sido fortemente moldado no lar pelos bons exemplos e ensinamentos dos pais. As pessoas se chocam quando ouvem que um professor phd, ou um médico renomado, ou um pesquisador, um cientista, é acusado de feminicídio ou violência doméstica. Isso é incomum? Infelizmente, não é incomum. Há uma camuflagem que esconde um falso moralismo no seio da sociedade moderna. E, muitas vezes, estamos falando de pessoas importantes, famosas, inteligentes, intelectuais, doutores e doutoras. Ainda está bem visível na minha mente o fato de que, num dia de aula, na UFPA, uma professora, depois de humilhar um aluno porque ele não tinha sido matriculado naquela turma e, portanto não poderia assistir aula com ela, o expulsou da sala aos gritos, deixando toda a turma espantada e levando o rapaz, que aparentava ter uns vinte e cinco anos de idade, às lágrimas. A turma era de pedagogia. O curso era de pedagogia. O centro era o de educação. A professora era phd em educação e dava aula no curso de pedagogia. O que falar depois disso? A língua fica seca, a boca sem palavras. Parece que estamos perdendo nossa essência, tornando-nos bestas feras.
As duas coisas têm que andar juntas, família e escola, já dizia José Veríssimo em seu livro A educação nacional (primeira edição de 1889 – Belém, e segunda edição de 1906 – Rio de janeiro). Aliás, as três, o antigo tripé da educação que jogaram dentro de um camburão de lixo, e dali nunca mais tiraram: a igreja (que ensina princípios e valores morais e espirituais à família), a família (que absorve esses princípios e valores e transmite-os aos filhos) e a escola (que dá continuidade ao amadurecimento do aluno através da formação intelectual, física e emocional). Sem essa parceria, não há como melhorar a educação, e não melhorando a educação, a sociedade está propensa à degeneração, uma vez que ela é formada por famílias, e aprendemos desde o antigo primeiro grau (atual ensino fundamental) que a família é a célula mater (mãe) da sociedade. Sem ela, não existe sociedade.
Portanto, se vivenciamos uma realidade em que crianças, adolescentes e jovens – pertencentes a qualquer classe social – estão se envolvendo com crimes de toda espécie, drogas, furtos, violência, e, por isso, estão perdendo a preciosa liberdade, sendo encarcerados em fundações sob a responsabilidade do estado, e, também, por falta de orientação, seja no lar ou por meio de órgãos públicos especializados, jovens mulheres estão engravidando e formando nova família ainda em idade prematura, ao mesmo tempo em que um adolescente, antes mesmo dos dezoito anos de idade, está se tornando pai sem nenhum amadurecimento físico, intelectual ou social, sem nenhuma habilidade profissional que o qualifique para emprego, sem perspectiva para um futuro próximo. Isso é o reflexo de famílias destroçadas, desestruturadas socialmente, emocionalmente, espiritualmente e, dependendo da classe em que estão inseridas, também podem estar desestruturadas economicamente. E essa característica, na verdade, está presente na maior parte das famílias que têm renda baixa ou nenhuma renda fixa, trabalhando como autônomas. Então, vamos desenterrar esse tripé?
Aqueles dois professores do Sistema Modular, o Abir e o Emos, foram deslocados para trabalhar na localidade de Vila Carapanã, no município de São Félix do Xingu, na década de 2000. O Abir e o Emos, eram dois profissionais que, na condição de servidores temporários, não podiam se dar ao luxo de questionar nada, nem as coisas que viam nem as que ouviam falar, já que, na condição de prestadores de serviços, haviam assinado um contrato de trabalho junto à Secretaria Estadual de Educação – SEDUC por um período de dois anos e, devido às condições contratuais, não podiam ir contra as decisões das coordenações. Assim, sem ter um vínculo específico com uma Unidade Regional de Educação – URE, à qual eles pudessem se reportar diretamente, ficavam à disposição de quem precisasse de seus serviços. Nesse caso, se faltasse professor em outra URE, lá iam os dois para trabalhar e tapar buraco, já que a necessidade de mais professores era e, talvez seja, ainda, muito grande, neste sistema de ensino.
Percebam as brechas que são deixadas pelo poder público que levam ao enfraquecimento do processo educativo, não apenas regional, mas em âmbito nacional, uma vez que o problema com a falta de professores existe tanto no ensino regular ou modular, nas redes estaduais e municipais. E essa falta de professor, o tempo escasso para capacitar-se, a falta de investimento em recursos materiais e recursos humanos nas escolas, a insegurança dos demais atores envolvidos no processo de ensinar e aprender por conta da tal “cultura da violência gratuita”, tudo isso mostra o desleixo das autoridades políticas e executivas, eleitas, de forma direta ou indireta, pelo nosso voto, pelo voto do povo, ou, pelo menos, da maioria. A falta de comprometimento dessas autoridades públicas com a educação e cultura deixa implícito o recado que eles querem transmitir: “queremos o seu voto, mas não estamos nem aí pra vocês depois da eleição!”
É isso! O povo só é importante na hora de votar. Depois, perde todo o seu valor. Onde estão os metros de terra mais caros da cidade? Na periferia? Não. No centro. Onde estão as residências mais caras da cidade? No centro. Onde estão as melhores pavimentações da cidade? No centro. Onde moram as famílias mais abastadas da cidade? No centro. Quem ocupa os cargos mais importantes e aquinhoados na administração pública? A classe média apontando pro alto, nunca pra classe média baixa. Ou seja, a elite domina quase que todas as administrações públicas do estado. Como iriam se preocupar com os que estão abaixo da linha demarcatória que coloca um abismo entre as classes sócias?
Infelizmente, esse explícito desleixo com a educação pública não é algo considerado novo no Brasil, pois já vem acontecendo desde o período Imperial e continuou durante a República. Foi justamente na brecha deixada pela incompetência dos governantes, causando o fracasso escolar, que as primeiras escolas americanas particulares aportaram em nossas terras tropicais, trazendo o ensino pago pra ficar de vez.
Notem que essa história não tem fim. Ou, pelo menos, não tem um fim feliz, porque a velha história se repete mais uma vez. E, neste caso, especificamente, no SOME, pois, como a 22ª URE de Xinguara, à qual o município de São Félix do Xingu estava vinculado à época, encontrava-se com grande falta de professores, os nossos caros heróis Abir e Emos foram mandados para lá. Sim, foram mandados porque não havia professores disponíveis, lotados naquele lugar. E o problema se agravava ainda mais quando os mesmos tinham residência fixa em Belém do Pará, e não no município onde realizavam suas atividades pedagógicas. O mais correto, para que essa deficiência de falta de educadores no ensino médio fosse sanada, era que selecionassem professores de municípios próximos, ou do próprio município, ou de Ourilândia do Norte, ou Rio Maria, já que haviam sido aprovados no Processo Seletivo – PSS organizado pela gerenciadora do SOME.
Como entender tais situações? Não dá pra entender como isso acontece. Pelo menos, mostramos duas ou três maneiras de resolver o problema, mas ele continua martelando a cabeça dos gestores. É a burocracia, que se chama ignorância, que atravanca o progresso, já dizia o sábio personagem Odorico Paraguaçu, interpretado pelo grande ator Paulo Gracindo na novela “O Bem Amado”. Então, se é uma questão burocrática, que a equipe técnica resolva esses pepinos. Que a burocracia seja desburocratizada o mais rápido possível, porque o aprendizado de nossos conterrâneos não pode esperar mais.
Retornemos para os nossos profissionais que estavam viajando pela primeira vez para uma localidade que fica bastante distante de suas residências – São Félix do Xingu – e, à medida que se distanciavam de Belém e se aproximavam de seu destino de trabalho, iam ficando visivelmente preocupados, já que receberam, antecipadamente, a triste notícia de que não havia nada na casa, nem gás para fazer sua alimentação, nem chá quente, nem café. De que adiantava ter um fogão se não tinha o botijão de gás? Era o mesmo que ter a caixa de fósforos e não ter o palito. Outra informação que os dois receberam, também nem um pouco animadora, era de que eles seriam responsáveis financeiramente por todos os gastos que poderiam ocorrer naquela localidade. Ou seja, estavam por conta deles.
Atualmente, esta Vila não faz parte mais do SOME. Entre os motivos, podem ser enumerados os seguintes: a não assinatura do convênio como forma de respaldar e dar garantias aos professores, quando lá estivessem atuando, e, também, a falta de transporte escolar e merenda escolar. Essas questões suscitam preocupações serias por parte dos profissionais do SOME em todo o Estado do Pará, pois se vislumbra, a longo prazo, talvez, uma possível extinção gradativa desta política pública, em virtude dos inumeráveis problemas surgidos entre o estado e os representantes municipais, muitas vezes decorrentes de ideologias políticas, partidarismo, a não disponibilidade e até desvio de recursos financeiros para aplicação na área educativa e, também, a má vontade de investimento que incentive o ensino público gratuito, uma vez que é muito comum nos depararmos com falas deletérias de atores (políticos, pessoas comuns ou influentes) que desconhecem quase que totalmente o seguimento educacional e sua importância para o desenvolvimento das sociedades no mundo.
Durante o trajeto da viagem, na passagem por Xinguara, os nossos dois heróis - Abir e Emos – se dirigiram à escola-sede para entregar a carta de apresentação à coordenação do SOME regional. Os profissionais ficaram em Xinguara um par de horas à espera de outro ônibus que os levaria até a sede de São Felix do Xingu. E, de lá, pegariam outro transporte para a localidade de Vila Carapanã, onde iriam trabalhar. Oxe! Quanta mão de obra! Só quem viveu essas experiências, conhece as dificuldades e o raio x do processo educativo nos lugares mais distantes da capital, ou seja, conhecesse a educação por dentro, coisa que muita gente nem imagina, um rosto que muita gente nunca viu.
Interessante dizer que, à medida que os dias passavam, o calendário escolar também foi sendo adaptado àquela rotina do lugar, que, pra quem trabalhava no SOME, bem como para quem trabalha ainda, para os novos professores e para aqueles jurássicos que ainda não pediram aposentadoria, tudo aquilo era considerado normal para localidades distantes dos grandes centros. Era uma questão de adaptação. Adaptar-se aos costumes da localidade, e não o contrário.
Depois de três dias e meio viajando na poltrona pouco confortável de um ônibus, Abir e Emos, finalmente chegaram à vila Carapanã. Três dias e meio! Eles não estavam viajando pra fora do estado. Estavam viajando por terras dentro do Pará. Parodiando o escritor português Almeida Garret, eles estavam “viajando na nossa terra”. Ao desembarcarem do ônibus, imediatamente, procuraram saber onde ficava a casa dos professores. E o melhor lugar para perguntar era na escola local. Lá, foram informados que a casa dos professores era muito simples e humilde, sem quase nada de objetos, móveis, utensílios domésticos. Parece que estavam preparando o espírito dos dois para o que iriam encontrar pela frente. Quase nada era pouco. Como dizia o velho poetinha Vinícius de Moraes: “Era uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada. Ninguém podia entrar nela, não, porque na casa não tinha chão...”
Com o recebimento da chave, pegaram suas mochilas de viagem, colocaram-nas nas costas e partiram para o local indicado pelo secretário da escola que os atendeu. Ao chegarem à residência, se sentiram profundamente humilhados diante da precariedade e desgaste da propriedade, onde ficariam dois meses para cumprimento do calendário, portanto, cinquenta dias letivos.
O professor Abir, por ser mais questionador, solta uma indagação e, ao mesmo tempo, uma exclamação:
- Mano, nós vamos morar nessa casa?!
O professor Emos, logo responde:
- Sim, meu amigo! Que situação arrumaram pra nós. E o que tem aqui são apenas umas latas velhas na cozinha, essa mesa com três tamboretes e os armadores. Só. Tudo se resume nisso.
- Teremos que fazer uma limpeza geral – diz o professor Emos. – Aqui tem fezes de diversos bichos, principalmente, de morcegos. Com certeza, não fazem limpeza na casa há muito tempo.
- Parece mais uma casa abandonada. Se fizermos silêncio, conseguiremos ouvir até os murmúrios do Pluft, o fantasminha legal – respondeu Abir, com certa ironia.
- Outra coisa: os banhos terão que ser na escola – disse Emos.
- Que legal, terei de andar de toalha na rua. Era só o que faltava – ironizou o professor Abir.
É importante fazermos um parêntese aqui, nessa parte do texto que fala da casa dos professores. Aqui cabe uma reflexão profunda, com direito a indagações e exclamações que requerem uma resposta das autoridades municipais e estaduais, no que concerne aos direitos dos professores de serem recebidos e tratados com dignidade num lugar que não é o seu berço de nascimento, mas é o seu local de trabalho, naquele momento. Não queremos aqui generalizar as experiências dos professores do SOME, em relação ao auxílio dos municípios, como sendo algo totalmente negativo. Não. Em muitos lugares, os professores foram tratados com dignidade, com respeito, com toda a ajuda necessária do município. Tanto, que trazemos desses lugares, muitas amizades e boas recordações. Mas, com certeza, muitos educadores, ao lerem esta crônica, se identificarão com os professores Abir e Emos. Suas histórias se cruzarão e, como num flash, as imagens das andanças, dos deslocamentos, dos percalços, das dificuldades antes, durante e depois da chegada ao lugar de trabalho, virão na mente. Então, as histórias se confundirão entre lágrimas de alegria e tristeza, porque somos um terreno fértil para a arqueologia cavar impressões do passado.
Será que a prefeitura (gestor(a), secretário(a) de educação, assessores, diretor(a) da escola, etc.) não sabiam da chegada de professores em seu município? E que esses professores estavam vindo de tão longe, que deixaram família pra traz, deixaram o conforto do lar, pra contribuir com o desenvolvimento intelectual, cultural, econômico e social do município? As autoridades municipais não sabiam que a casa que iria abrigar por dois longos meses esses dois educadores, estava totalmente deteriorada, e que não tinha condições de abrigar ninguém?
Ora, quando os dois chegaram lá, encontraram uma casa repleta de fezes de toda sorte de bichos e, principalmente, de morcegos, que fizeram daquele lugar abandonado o seu lar, doce lar. É inconcebível que a secretaria de educação municipal não tenha atentado pra isso; é inconcebível que não tenham mandado nenhum trabalhador de serviços gerais da prefeitura municipal, ou da própria secretaria de educação, para fazer uma limpeza geral na casa, lavar com água e sabão. Tudo tão simples.
Será que não havia água no município? Será que não havia sabão em pó no comércio local? Será que a prefeitura estava tão ruim nas finanças que não podia comprar um pacote de sabão em pó e uma vassoura pra limpar a casa onde nossos colegas professores iriam ficar? Será que era exigir demais?
Quanto dinheiro não é desviado nas prefeituras para negócios escusos? Para enriquecer gestores e seus associados com o mau uso do dinheiro público? Ah, só lembrando que os dois professores descontavam e ainda descontam impostos, pagavam e ainda pagam todo tipo de tributo inventado pelo poder público, portanto, têm direito de usufruir do bom uso desse dinheiro, dessa verba pública, que não é do gestor, não é do empreiteiro, não é do empresário, não é do político. É do povo, do cidadão honesto que honra seus compromissos, que não deve nada ao Estado.
Tudo isso me faz pensar que havia uma má vontade em atender os professores; que o gestor público não levava a educação a sério; que não havia compromisso em gastar verbas municipais pra atender alunos de escola pública, pessoas simples, humildes, do interior; faz-me pensar que eles estavam querendo deixar os serviços braçais para essa parte da população, e os serviços burocráticos, para os bem-nascidos.
O professor é uma autoridade onde quer que ele esteja atuando. Ele é uma autoridade na área educacional, assim como o magistrado é uma autoridade em sua comarca de atuação. Pensem: será que iriam acomodar um juiz numa casa abandonada? Será que um juiz não tem as melhores acomodações possíveis na comarca da cidade onde atua como magistrado?
E um médico? Quantos médicos há por município no Pará? Há falta ou abundância de médicos para atender a população? Os médicos recém-formados há muito que vêm sendo assediados pelas prefeituras municipais, para trabalharem no interior do estado. E sabem por quê? Os recém-formados, por não terem experiência, eram contratados, ainda em fins da década de 1990, por pelo menos quinze mil reais. E ainda exigiam casa, alimentação, empregada, combustível para o carro, ou passagem paga pela prefeitura. E ainda assim, era um bom negócio para o gestor municipal, porque os médicos experientes, dificilmente, se disponibilizavam a sair de Belém para trabalhar no interior. Achavam que isso era um retrocesso por se acharem isolados do centro intelectual das ciências, dos estudos científicos. Mas quando aceitavam ir trabalhar no interior, exigiam o olho da cara.
E, assim, a lista de privilegiados que saem de suas casernas para trabalhar no interior do estado vai se estendendo: promotores, engenheiros, delegados, etc. Mas o professor não tem esse direito de exigir qualquer tipo de conforto; não tem o direito de dormir numa cama macia; não tem direito de ter um sono reparador após um dia de trabalho desgastante que requer estudo dos assuntos a serem dados em sala de aula, pesquisa, elaboração de aulas, elaboração de provas, correção de provas, atividades culturais, atividades extraclasse; muitas vezes, tem que fazer o papel de psicólogo, de médico, enfermeiro, socorrista, segurança, pai e amigo do aluno.
Parece pouca coisa? Não? Então, por que não tratam o professor como uma autoridade que merece respeito das autoridades públicas? Por que tentam difamá-lo, desacreditá-lo perante a opinião pública, como se não tivesse importância nenhuma? Ah, sim, agora entendi. É porque o professor é um perigo para os maus gestores, para os que querem se aproveitar da aparente ingenuidade do povo. Esse tipo de gente não quer ver luzes iluminando a mente da população pobre, clareando suas ideias, fazendo com que eles passem a questionar os seus representantes e a exigir os seus direitos.
É, o professor não é representante das classes abastadas; ele é representante das classes necessitadas; ele ainda é a resistência viva no meio de uma sociedade degenerada com seus podres poderes.
E, assim, nossos heróis do Sistema Modular vão dando um jeito daqui e dali, aquele jeitinho brasileiro, porque o brasileiro nunca desiste, a fim de sobreviverem nas andanças pelos rincões do Estado do Pará, já que a própria secretaria de educação do estado, ao invés de apoiar seus servidores, exigindo cumprimento de acordos ou parcerias com as instituições municipais, muitas vezes, ao se calar, torna-se cúmplice de seus delitos, deixando o professor, longe de casa, desprotegido e sem voz para protestar.
Ah, que miserável politicagem partidária que faz o certo virar errado! Que faz a mentira virar senso comum. O que diria Castro Alves hoje, sabendo que a luta, agora, não é apenas pela libertação e dignidade da raça negra, mas por todos aqueles que sentem, no dia a dia, as chibatadas da classe senhorial. E eu me uno às palavras dramáticas deste poeta d’O Navio Negreiro:
Ah, “Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus...
Ó mar! Por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! Noites! Tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!...”
“Somos todos iguais, braços dados ou não!” O que diria Geraldo Vandré hoje?
Somos todos iguais no dia a dia, nas oportunidades, na competitividade, nas alegrias, nas tristezas, na luta pela sobrevivência? Ou essa referência existe apenas no papel da Carta Magna lida apenas em belos discursos patrióticos?
Mas eu acredito ainda que as flores vencerão o canhão. Por que flor é símbolo de beleza, de pureza, de paz. A flor é a própria materialização do Amor. E o amor nunca há de render-se ao ódio.
Aqueles dois professores – o Abir e o Emos – ainda estão por aí, vivendo as suas aventuras, as suas descobertas, tentando entender as contradições da mente humana, as suas incoerências e imperfeições. Mesmo não sendo os heróis preferidos por essa sociedade caótica; mesmo não sendo reconhecidos e sendo tratados quase como figuras invisíveis, eles ainda continuam representando o que de melhor há no ser humano; eles continuam incomodando o incomodado.
Esses dois professores sou eu e é você. Somos nós.
*** Os autores são escritores e ex-professores do Sistema de Organização Modular de Ensino - SOME, que no dia 15 passado, completou 43 anos de existência e resistência.
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