Maria de Fátima Santos de
Oliveira*
O debate educacional percorre os
mais diversos caminhos historiográficos, inclusive aquele que nos permite
estabelecer o diálogo entre a história e a literatura.
Diante desta perspectiva,
procurei fazer uma abordagem da educação pública no Estado do Pará percorrendo
a literatura dalcidiana através da obra Passagem dos Inocentes e como
suporte teórico a micro-história.
A micro-história é mais uma das
contribuições científicas que podemos lançar mão para se obter o passado, o que
implica dizer que não devemos nos limitar em documentos escritos oficiais, mas
também utilizar narrativas, fruto de como os sujeitos viveram e pensaram sua própria
existência. No dizer de Ginzburg (1989) [...A singularidade na micro-história
(...) assume o paradigma indiciário ...], este é um modelo epistemológico
baseado na interpretação dos indícios sobre o passado. Portanto, a educação
elemento ou fragmento usado na obra narrativa é um indício de um contexto maior
no período em estudo, revelado pela contribuição literária do marajoara
Dalcídio Jurandir.
Passagem dos Inocentes, é a obra
escolhida para sinalizar os “sintomas da doença” educacional do século XX, pois
traça um perfil educacional em Belém no Grupo Escolar “Barão do Rio Branco”,
Escola esta que foi palco da vida estudantil deste escritor nos anos de 1922 a
1924.
O orgulho da Escola, percebe-se
nas suas palavras [...o caminho para o Barão, passava pelo Grupo Escolar do
Largo de Santa Luzia, o Doutor Freitas, e espichava o beiço: esse – um aí?
Coitado. Não tinha a boa parecença do Barão, este sim...] (1984). No entanto
Alfredo fica decepcionado com o método das aulas, era obrigado a decorar datas,
fatos que o deixava perplexo, por isso duvidava do que ouvia da professora.
Veja o fragmento: [...Quem em mil quinhentos e quarenta e nove chegou na Bahia?
E isto dos Séculos? Tempo contado em cem anos? Era de verdade um tempo? ...] (p.115). Estas
memórias de Dalcídio Jurandir, pontuam indícios da educação escolar do século
XX baseado na concepção de transferir o conhecimento para o aluno simplesmente memorizá-lo.
Observe mais uma vez o que diz Alfredo sobre suas aulas no Grupo Escolar “Barão
do Rio Branco” [... lições giz cobria a pedra de máximo divisor comum, volumes,
quantias, governadores-gerais, coisas do mais puro faz de conta (...). A maçã
de que saia a fração, cadê a maçã?...] (p.116). São fragmentos que a literatura
dalcidiana nos conduz a uma reflexão do processo ensino aprendizagem, ou seja,
no século XX aquela era a melhor aula, pois o aluno queria mais.
Na imaginação de Alfredo a aula
bem que poderia ser diferente, ele dá a seguinte sugestão: [...Pela porta do
lado, procurar as mangueiras do fundo e sem estames ou pistilo chamar os
alunos: esta vocês conhecem de berço. Olhem se tem manga, vamos comer umas e
olhar o caroço, olhem uma ali grelando, e as folhas, o que estão vendo nas folhas?
Já viram um reino de formiga todo ocupado em carregar cargas e cargas de folha?
Quanta folha em Cachoeira nem uma agora para a lição de coisas na mesa da
professora...] (p.116). Observe que o aluno propõe o uso dos objetos concretos
mas que não são utilizados pela professora, isso nos dá a dimensão da
inquietude do aluno que tem na escola um aparato pedagógico, mas não tem a
melhor aula. Talvez porque a professora usava muito mais o aparato pedagógico e
curricular em detrimento da contextualização do cotidiano do educando.
Sem perder de vista que o
paradigma da época é tradicional, convém lembrar que Alfredo sugere uma aula
mais dinâmica e criativa. No entanto, o procedimento metodológico da professora
é outro, por isso, o aluno infere-se a angústia de ter uma aula fora do seu
contexto social, por exemplo, quando lembra o seu cotidiano, como as mortes e a
sujeira no Umarizal contrastando com a beleza e limpeza da Estrada de Nazaré e
se pergunta o que sei de tudo isso? Que é que as professoras vão explicar no Barão? Ou não vão saber?...] (p.214).
Observa-se que o contexto social, da qual faz parte Alfredo era separado pelo
muro escolar, ou seja, a obra Passagem dos Inocentes apresenta indícios de como
era a aula do passado. Fica explicito que era uma aula baseada no paradigma
tradicional, onde decorar datas, sem de fato entrar no significado do que se
estudava e o uso da memorização se sobrepunha aos saberes do cotidiano do
educando.
E hoje o que mudou na vida
escolar?
Rubem alves (1999) faz também reflexões sobre o aspecto
desinteressante do ensino e constata que a escola não seduz o aluno. Ele fala [...assombra-me
a incapacidade das escolas de criar sonhos. Enquanto isso, os meios de comunicação,
principalmente a televisão que conhecem melhor os caminhos dos seres humanos
vão seduzindo as pessoas com seus sonhos pequenos...].
Os caminhos literários do
escritor Rubem Alves e Dalcídio Jurandir, estão associados a uma
impossibilidade de a escola oferecer práticas pedagógicas interessantes aos
alunos. Esta situação está intimamente associada à formação do professor,
também, que muitas vezes contribui para que seus alunos sejam omissos e
desinteressados.
De acordo com os Parâmetros
Curriculares Nacionais [...A lei Federal 9.394, de 1996 – Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional, destaca o papel importante da escola e lhe confere
propostas inovadoras...] (1998), como exemplo, o paradigma da Pedagogia das
Competências, fundamentada em dois eixos temáticos como a interdisciplinaridade
e o uso do cotidiano no contexto escolar. Por essa proposta de ensino os alunos
não devem ser moldados para reproduzir conhecimentos. Como diz Perrenoud
(1999)[...é impossível avaliar competências de forma padronizada...], ou seja,
a avaliação assume dimensão de acompanhamento e procura desfazer o caráter de
punição tradicionalmente utilizado nas nossas escolas. O paradigma das
Competências não ignora os conteúdos e propõe que a interdisciplinaridade deve
ser trabalhada através das temáticas ou projetos educacionais. Nesta
perspectiva, o cotidiano passa a ser fundamental para a aprendizagem.
É importante lembrar, que a obra
Passagem dos Inocentes sinaliza questionamentos sobre o método educacional do
século XX, pois, o método tradicional da educação já é controvertido para
Dalcídio Jurandir. Na fala de Alfredo quando ele diz “que é que as professoras
vão explicar no Barão”?. Ele quer explicação para os acontecimentos do
dia-a-dia como: greve dos coveiros, greve das costureiras da fábrica Aliança,
morte de tantas crianças na Maternidade da Santa Casa, porque morava num cheio
de lama? Porque os doutores só faziam conferências em vez de acabar com as
mortes dos anjos?. Enfim, essas reflexões já sugerem uma nova abordagem
educacional do século passado.
Edgar Morin (2002), nos alerta
[...O ser humano é a um só tempo, físico, biológico, psíquico, cultural, social
e histórico. O ser humano é totalmente desintegrado na educação por meio das
disciplinas, tendo-se tornado impossível apreender o que significa o ser
humano...]. Em outras palavras significa dizer que o uso do cotidiano escolar é
importante na medida em que o aluno é visto como ser humano em toda sua
globalidade. Diante desta afirmativa posso concluir que Alfredo é o porta-voz
do aluno, mas o aluno inquieto pelo descaso social, o aluno visto como ser
global, pois s inquietações educacionais de Dalcídio Jurandir são tão atuais
como Edgar Morin, Perrenoud, Rubem Alves, Paulo Freire e outros.
Enfim, o cotidiano de Dalcídio
Jurandir também é marcado de angústias e incertezas seja por ter sido preso no
antigo Presídio São José, seja pelo desemprego por diversas vezes, contudo, contrariar
todos os obstáculos como preconceito por ser pobre, negro e ser natural da
Amazônia já o fazem digno e respeitado não só pelas convicções políticas como
pela obra literária. E mais, Dalcídio vivencia o caos social da República e
pela visão crítica de mundo que possui faz denúncias desse caos, entre eles, a
educação pública vigente no século passado.
REFERÊENCIAS
Alves, Rubem. Entre a Ciência e a
Sapiência – o dilema da educação. SP: Loyola,1999. 11ªed.
Ginzburg, Carlo. Sinais:Raizes de
um Paradigma.In:Mitos,Emblemas: Morfologia e História:trad-SP:Companhia das
Letras, 1989
Jurandir, Dalcídio. Passagem dos
Inocentes. Belém: Falangola, 1984
Morin, Edgar. Os Setes Saberes
Necessários à Educação do Futuro.Trad.SP: Cortez, 2000
Parametros Curriculares
Nacionais: Mec, 1998
Perrenoud, Philippe. Construir as
Competências desde a Escola: Porto Alegre: ArtMed.1999
*A autora é Professora Especialista em História do Brasil, História da Amazônia e atuando na EEEFM "Maria Gabriela Ramos de Oliveira". Texto produzido durante a especialização na Universidade da Amazônia- UNAMA, com apoio da Secretaria Estadual de Educação - Seduc, em 2005.
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