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segunda-feira, 10 de outubro de 2022

MINHA MÃE DONA WALDA

 


PRESTES, Carlos Alberto

 

Quando Deus, no seu querer, te criou, bem sei que te criou já como uma humilde pastora que apascenta seu rebanho nos altos e baixos das montanhas verdejantes, rígidas, de concreto e de ferro das zonas urbanas e rurais, no Brasil ou pra além do Jordão. São lindas as luzes multicores que enfeitam a cidade no mês de natal. Mas ainda mais linda é a zona rural iluminada pela luz do luar e infinidades de estrelas, clara luz que clareia a noite, diminuindo os nossos medos de fantasmas, vira-porcos e lobisomens. Claro, deves ter feito um pedido pra aquela estrela cadente que viste atravessando a escuridão do céu. Esse pedido deve ter te acompanhado anos e anos, guardado na mente do teu coração. O que será? Não sei! É um segredo teu e de Deus, assim como todos nós temos os nossos segredos, os nossos desejos e pedidos.


Quando nasceste o céu te sorriu e deu graças, porque sabia que nascia contigo a esperança de um mundo mais sensível, mais humano, capaz de se condoer com as lágrimas alheias, com a miséria do pobre, com o soluço da criança. És mulher! E a esperança está na mulher, porque só ela consegue compreender tão profundamente o que vai no íntimo do ser humano. Só o amor dela, unicamente, pode refletir um vislumbre do amor de Deus. Quem pode compreender o amor de Deus pelo ser humano? Quem pode compreender o amor de uma mulher, de uma mãe, pelo filho ou filha?


Eu não te vi brincar de boneca com as tuas coleguinhas da infância. Eu nem sabia que tu tiveste infância. Para mim, na minha imaginação, tu sempre foste adulta. Eu nem sequer vi tuas bonecas, nem sei como elas, por acaso, se chamavam: Suzi, Bianca, Barby, sei lá, apenas estou imaginando algum desses nomes que crianças geralmente colocam em suas bonecas. Nem sei se tuas bonecas eram de plástico ou feitas de pano, como a Emília do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Não sei se conheceste as personagens desta história de Monteiro Lobato: o Visconde de Sabugosa (um erudito, feito por tia Anastácia a partir de uma espiga de milho), Marquês de Rabicó (um leitão guloso e covarde, é o animal de estimação de Narizinho), Dona Benta (avó, proprietária do sítio), Tia Anastácia (quituteira de mão cheia, braço direito de dona Benta), Tio Barnabé (homem da roça que mora e trabalha nas propriedades de Dona Benta. Sabe todos os mistérios do mato), Narizinho (Lúcia, a menina do nariz arrebitado), Saci Pererê (vive azucrinando a vida de todos no sítio), a Cuca (mora na floresta, ao lado do sítio), Pedrinho (mora com a mãe na cidade, mas passa as férias no sítio), Emília (boneca de pano feita por Tia Anastácia para Narizinho brincar. Em uma aventura pelo reino das Águas Claras, a boneca toma uma pílula e começa a falar). No meu tempo, eu cresci assistindo este programa na TV em preto e branco ainda. Mas no tempo de minha mãe nem se tinha televisão em preto e branco, nem sei se tinha o programa.


Eu não vi quando tu deste os primeiros passos, tremendo com medo de cair, quando tua mãe, minha avó materna, do outro lado, a alguns passos de ti, agachada, de braços abertos, batia palmas e te chamava, dizendo: “vem filha! Vem! Não tenha medo que mamãe tá aqui pra te pegar!” Nada ficou desse tempo. Nenhuma foto, nenhum retrato tirado na Kodak para guardar a história daqueles primeiros anos, teus primeiros anos, teus primeiros passos, a roupa, o vestidinho, o penteado, o sorriso.


Mas tu venceste aquele primeiro obstáculo. Andaste e nunca mais paraste. Por detrás, invisível, estava uma mão delicada, pronta pra te amparar, pra te guiar os passos, porque tu eras uma criança que precisava dos braços paternos e das mãos maternas.


Depois chegaste à adolescência, aquela idade que a gente sonha poder tudo, que a gente voa até às nuvens, que a gente ama desesperadamente quase sem querer, sem saber o porquê, onde a liberdade é quase sem limites... Quase, eu disse quase. Porque um mundo sem regras, sem normas, sem limites, perde toda a sua beleza natural, a sua essência estética, os seus valores e princípios que fazem parte do nosso DNA desde quando se entende que o mundo é mundo. Mas a tua adolescência foi a de um tempo que aconteceu quase beirando a infância, lá pelos anos da década de cinquenta, uma adolescência no interior de Manaus, na ilha da Trindade, onde teu pai era pescador, homem rígido, sério, de poucas palavras, de costumes antigos, porque o tempo também era antigo. Bem diferente da adolescência do meu tempo, e mais diferente ainda da época dos teus netos e netas, a geração da tecnologia, do notebook, do celular, da internet, das redes sociais.


Tu cresceste, e tudo ao teu redor cresceu junto contigo. As ruas do teu bairro começaram a ficar pequenas para ti. Então, pegaste uma folha de cartolina e lápis de cor, e desenhaste duas asas – as tuas primeiras asinhas – pintadas com as cores dos olhos da tua imaginação. Depois, quiseste voar, e voaste como adulto algum poderia jamais fazer em toda uma longa vida. Sobrevoaste o teu bairro e atua cidade, atingiste as nuvens do céu e deste a volta pelo mundo, este pequeno e grande mundo, que me lembra até aquela velha história escrita em 1872 de “A volta ao mundo em oitenta dias”, brilhante romance do escritor francês Júlio Verne. Não se contentando, ultrapassaste os foguetes e chegaste ao limiar do universo, antes mesmo do primeiro homem pisar na lua. Tudo isso fizeste quando eu, ainda, não fazia parte do teu mundo. E nem imaginavas que eu faria, eu e os outros filhos. Não tinhas ideia de como seríamos, de nossos rostos, cabelos, a cor, o sorriso, a personalidade, o caráter. Sim, tu correste o teu universo antes de existirmos. E o mais incrível é que foste tão longe e... Quem sabe um dia, eu irei também.


O tempo foi passando, porque o tempo não tem freio, seja ele cronológico ou psicológico, e tu foste crescendo, o mundo foi ficando pequeno e apertado, e as responsabilidades do dia-a-dia foram ocupando o tempo da tua imaginação. Veio o namoro sério com o cametaense Raimundo Leopoldo Prestes, o noivado, o casamento ainda na flor da idade, o primogênito dos filhos, depois outro e outro e outro, e as tuas bonecas foram se distanciando, e se perderam no quarto das tuas lembranças.


De lá para cá, não descansaste um instante. Trabalhas noite e dia, e, muitas vezes, entras pela madrugada, velando e orando pelas tuas crianças de todas as idades, que agora não são mais bonecas de pano, ou de borracha, ou de plástico, inertes, sem fôlego de vida, com sorriso preso no rosto. Agora, são crianças que respiram, de carne e osso, com coração que bate, que sentem dor, fome, ficam tristes, adoecem, falam e dão gargalhadas. Essas crianças roubaram o teu tempo de mocidade, os sonhos que tinhas ainda pra sonhar, o terceiro grau escolar, as viagens que tinhas pra viajar. Mas tu nunca reclamaste, cumpriste o teu papel de mãe, simplesmente sendo mãe, amorosa, dedicada, com preocupação constante. Este era o teu mundo. Este era o teu palco que pisaste como quem vai à busca de receber o Oscar. Este ainda é o teu palco: a casa, o lar, a família.


Ninguém sabe, ninguém vê, ninguém ouve nem se importa com o teu suplício por causa da criança (aquela criança que cresceu) que está nas ruas geladas, trabalhando, vagando com “amigos” pelos vendavais dos prostíbulos. Estará bem? Tu pensas, com o coração aflito, pois o mundo moderno não te permite deitar a cabeça no travesseiro e dormir aliviada, sabendo que o dever daquele dia está cumprido, porque o filho, teu filho, está nas ruas a vagar, sem se preocupar se dormes ou não.


Hoje, mesmo a criança tendo crescido, tu ainda velas por ela todas as noites, porque, para ti, ela nunca deixará de ser criança, aquela criança que tu carregavas no colo e fazias adormecer, cantando uma cantiga de ninar, aquela cantiga de ninar que aprendeste com tua mãe, minha avó, tão antiga, tão simples como o boi da cara preta, como Dominique, de 1964, interpretada por uma cantora chamada Giane, de quem eu nunca ouvi falar, mas me lembro da canção que diz assim:


Dominique, nique, nique / sempre alegre esperando alguém que possa amar / o seu príncipe encantado / seu eterno namorado / que não cansa de esperar /


Dominique tem um sonho / e alguém pode realizar / há de vir um cavalheiro que a conduza para o altar /


Dominique, nique, nique / sempre alegre esperando alguém que possa amar / o seu príncipe encantado / seu eterno namorado / que não cansa de esperar /


Certo dia, de passagem na avenida, alguém notou / o doce olhar de Dominique / ela então se enamorou /


Dominique, nique, nique / sempre alegre esperando alguém que possa amar / o seu príncipe encantado / seu eterno namorado / que não cansa de esperar /


O rapaz com um sorriso logo pediu sua mão / e a visão do paraíso fez pulsar seu coração /


Dominique, nique, nique / sempre alegre esperando alguém que possa amar / o seu príncipe encantado / seu eterno namorado / que não cansa de esperar /


Apesar da pouca idade Dominique percebeu / que a maior felicidade foi o amor que Deus lhe deu /


Dominique, nique, nique / sempre alegre esperando alguém que possa amar / o seu príncipe encantado / seu eterno namorado / que não cansa de esperar /


Mas o tempo foi passando e a verdade apareceu / pois quem vive só sonhando desta vida se esqueceu /

Dominique, nique, nique / sempre alegre esperando alguém que possa amar / o seu príncipe encantado / seu eterno namorado / que não cansa de esperar /


Uma lágrima caída a rolar dos olhos seus /numa tarde de domingo, o rapaz lhe disse adeus / Dominique, nique, nique sempre triste a chorar o amor que se acabou / o seu príncipe encantado / seu eterno namorado / que se foi e não voltou.


Somos como as bonecas que nossas mães tiveram um dia: ficamos velhos e desgastados, e, às vezes, até desaparecemos por muito tempo, cansamos, constituímos família e até morremos, mas... lá no fundo, nunca deixaremos de ser as suas crianças. E isso é um ciclo que se repete conosco e nossos filhos, e se repetirá com nossos filhos e nossos netos. Talvez no fundo, no fundo, nós só queremos ser como Dominique, alguém que espera o seu príncipe encantado ou sua princesa encantada, que prefere viver num mundo de bonitas ilusões do que encarar a realidade de um mundo feio e devastado por causa do egocentrismo humano.


Quando o mundo nos vira as costas e nos apedreja com o furor das decepções, tu estás lá, no portão da casa, a esperar, para dizer: “Tu és meu filho amado, em ti tenho prazer! Sempre estarei ao teu lado!”


É verdade. Mamãe sempre está aqui, mesmo não estando. E agora eu fico olhando essas rugas que fazem parte desse processo natural da vida, tomando conta do teu rosto. Parece que tira a beleza. Há uma tentativa de tirar a beleza, apenas uma tentativa, mas não tira. Porque, ali, está a experiência de uma história única, que nenhum escritor poderá escrever com precisão. Muita coisa irá faltar no papel, muitos detalhes que nem lembramos, porque a vida está sempre em movimento, e cada instante vivido é uma grande história a ser contada. Esse mistério, Deus guardou com ele, pra um dia contar pessoalmente a cada um de nós. Ali, também, está guardadinha, por detrás dessas rugas, aquela menininha que brincou de boneca, que pulou Macaca, que brincou de Pata cega, que fez tudo o que um dia eu fiz também.


É... eu descobri que minha mãe foi criança um dia que nem eu. E que faz aniversário, apaga a velinha, envelhece e se emociona ainda...que neum eu. 

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