*Carlos Alberto Trindade Prestes
Em uma de suas viagens pelos rincões do Estado do Pará, através do Sistema de Organização Modular de Ensino – SOME, política pública que atende grande parte da população interiorana paraense, sendo uma alternativa dos alunos e alunas do ensino médio que moram distante da capital, de não interromperem os estudos ainda no primeiro grau (atual ensino fundamental), uma vez que os professores do SOME se deslocavam e ainda se deslocam até as comunidades mais distantes dos olhares urbanos, e garantem o suporte pedagógico e a continuidade desses alunos até o fim do ensino médio, o professor Abir Arievilo procurou sempre se adequar à realidade de cada localidade por onde tem desenvolvido suas práticas educativas. E, se acham que o respeito à diversidade cultural, às opiniões contrárias, aos costumes e falares locais, se aprende primeiramente no ambiente escolar, tenho que dizer que precisam conhecer realmente o professor Abir Arievilo, pois a sua trajetória não poderia jamais ter êxito, se o começo da escrita de sua caminhada não tivesse como origem o seu lar, o lar dos seus pais, da sua família de sangue. Foi lá que ele aprendeu os primeiros passos de como se tornar um cidadão na essência da palavra; foi lá que ele aprendeu que o homem não pode viver isolado do convívio social; que ele é um ser social por excelência; e que só existe segurança se todos os seguimentos da sociedade tiverem emprego digno que produza vida digna, e que, pelos seus resultados, pudessem combater a violência em todas as suas formas, alimentada grandemente, pela miséria social.
Por isso, caros leitores, o professor Abir Arievilo sempre soube entrar e sair. Quero dizer que ele, em todos os lugares por onde andou, sempre soube respeitar a cultura local e os costumes locais, inclusive trazendo toda essa bagagem pra dentro da sala de aula. Isso mesmo. Quantos e quantos projetos de intervenção ele vivenciou nesses anos de estrada. Projetos que mexiam não só com alunos e alunas, professores e equipe técnica da escola, mas com toda a comunidade: danças folclóricas, tradicionais, aulas com acompanhamento musical de voz e violão abordando temas sociais significativos com o intuito de levar tanto aluno como aluna a refletir sobre o seu papel diante do mundo, da sociedade, ou da sua própria comunidade. E em muitas localidades, o professor conseguiu resgatar com seus alunos as memórias do lugar, uma contribuição ímpar para a história do povo paraense. Creio que muitos de nossos caros leitores já ouviram falar de um projeto de intervenção através da história oral ou histórias de memória. Esse projeto tem a assinatura e iniciativa de professores do SOME. E tudo começou com alguns professores de História que descobriram a necessidade de resgatar as memórias das comunidades dos polos por onde passavam. Viram que as pessoas não conheciam as origens de seus antepassados, que as memórias de suas comunidades haviam sido apagadas, pois não sabiam dizer como tudo começou, quem foram os primeiros habitantes, de onde vieram, em que década, seu crescimento, como surgiram as primeiras moradias, o comércio, as escolas, etc., etc., etc. E saibam que este projeto foi muito importante para os alunos e para a própria comunidade, pois, a partir de um plano de atividades pedagógicas organizado por professores do modular, com entrevistas a moradores e, principalmente, daqueles mais antigos, com anotações de informações, gravações de áudio, coleta de dados, foi possível fazer o resgate de muita coisa que contribuiu para o registro da identidade local, a sua certidão de nascimento. E o professor Abir Arievilo fez parte desse processo todo. Isso mesmo, esse professor tem muita história pra contar.
Mas nem tudo são flores na vida de um professor, seja do SOME ou do regular. Abir, para quem não sabe, foi feito de carne e ossos, sangue, coração, razão e emoção. Às vezes, mais emoção; às vezes, mais razão. Assim é o ser humano, perfeito na sua imperfeição. Numa determinada localidade, o dito professor ficou chateado com tanto feriado que tinham. Tudo isso em razão dos padrões religiosos que a igreja milenar impunha para os comunitários, fazendo com que, tantas datas comemorativas de santos e santas – costume trazido pelos portugueses quando da colonização do Brasil – resvalassem em feriados municipais. Mas não tem como ninguém se espantar, nós estamos no Brasil, não é? No país onde toda semana tem um feriado pra se comemorar. E Isso significava que o comércio poderia não funcionar naquela data; e, assim, da mesma forma, os órgãos públicos municipais e, consequentemente, as escolas. Epa! As escolas? Sim, e por que não? Afinal, era feriado de santo. As aulas se recuperam depois.
E, para o professor do SOME, qual era o problema com os feriados em dias de semana? Simplesmente, não haveria aula e, portanto, o calendário letivo ficaria atrasado, dificultando o complemento da disciplina dentro da carga horária estabelecida pelo calendário. O professor Abir Arievilo estava cumprindo o terceiro módulo no município de Canaã dos Carajás – no sudeste paraense que, no ano de 2022, completou vinte e sete anos de emancipação do município – referente ao segundo semestre do ano de 2001 e, diante do problema que se apresentava, percebeu que as duas últimas semanas seriam sacrificadas, com prejuízo para ele e seus alunos. Para um professor que se dedica ao seu ofício, não poder terminar sua proposta pedagógica ou deixá-la incompleta, é como implodir em seu peito a bomba de Hiroshima ou queimar-lhe o livro preferido de cabeceira. Vendo por esse lado, é fácil constatar que Abir Arievilo não aceitava tal calendário municipal imposto pelas instituições que ditavam padrões sociais à comunidade, como as Igrejas tradicionais do mundo ocidental. Mas não adiantava reclamar. Feriado era feriado. E nem a prefeitura, nem a igreja milenar se importavam se professores e alunos teriam o calendário prejudicado, ou se as aulas seriam adiadas. O que importava era não deixar de cumprir as festividades nas datas comemorativas referentes aos santos e santas, padroeiros e padroeiras da comunidade, quer seja com missa, procissão, fogos de artifícios, comidas típicas e arraial na praça principal. Abir sabia que, parte do conteúdo e planejamento das aulas, não seriam concluídos do modo como ele achava. Logo, se viu obrigado a sair antes do município e botar o pé na estrada.
O professor arrumou todas as suas coisas, colocou no carro e pegou a estrada de volta para casa. Como tinha chovido bastante pela madrugada, o ramal de quase mil e trezentos quilômetros estava bastante danificado, e, por isso, Abir encontrou muitas dificuldades para percorrê-lo, pois havia um lamaçal danado á sua frente e muitas poças d’águas que não dava para escolher o melhor caminho por onde passar. E mesmo as estradas e vicinais estavam com o mesmo problema: lama, buracos, poças d’água, estrada escorregadia. Enquanto o professor olhava pelo retrovisor do seu carro – um Gol, modelo popular, um herói nacional que tentava sobreviver em meio ao desenvolvimento tecnológico que chegava, e à dureza daquela região – atento a tudo, percebeu que a viagem não seria fácil. Não, não seria nada fácil.
Aquele tinha sido o seu último dia de aula pelo sistema modular em Canaã dos Carajás, e o professor estava voltando pra casa de “malas e cuias”, como diz o ditado popular. Carregava de tudo, desde panelas, frigideiras, fogão elétrico, até os livros necessários utilizados nas atividades pedagógicas, já que na casa dos professores não tinha o básico de eletrodomésticos para que pudesse sobreviver.
E isso só iria piorar, pois, a partir do ano de 2003, com o fim do vínculo de compromisso por meio de convênio entre a SEDUC e as prefeituras municipais onde funcionava o SOME, os professores que chegavam nessas localidades passavam por muitos apertos como a casa pra morar, alimentação, e, em muitas ocasiões, tinham que bancar o seu sustento do próprio bolso, já que o convênio com a SEDUC passou a ser apenas um acordo verbal, sem escritura pública, sem assinatura registrada em cartório, sem um compromisso formal que garantisse o bem estar dos trabalhadores da educação pública quando se deslocassem para dar aulas nesses municípios.
Ao mesmo tempo em que o professor pensava nas dificuldades encontradas quando chegavam a certas localidades, não tirava os olhos da estrada, pois sabia que qualquer deslize poderia lhe custar muito caro. O carro sacolejava bastante, parecia que estava andando por cima de pedregulhos. Além disso, a chuva que havia caído deixou a terra barrenta, exposta, enlameada e muito lisa, o que não seria difícil de provocar algum acidente. Por isso, o professor estava atento a tudo, de olho pra que o carro não deslizasse pra alguma ribanceira à beira da estrada.
Depois de ter percorrido 400 quilômetros, ao aproximar-se de uma ponte, seu semblante ficou visivelmente pálido e contrariado, pois bem à sua frente havia uma carreta atravessada que ocupava toda a largura da ponte, de modo que não dava para atravessar nem pelo lado direito, nem pelo esquerdo. Abir Arievilo imaginou todo o percurso que teria que fazer novamente, se tivesse de voltar e procurar outra estrada., uma vez que, por ali, jamais passaria. Não havia jeito. Teve que ir à procura de outro trecho, outra vicinal por onde pudesse continuar sua viagem. Deu ré no carro e percorreu alguns quilômetros até que, finalmente, encontrou um desvio por onde poderia prosseguir viagem, uma viagem que demoraria um pouquinho mais para chegar ao seu destino, uma vez que teria que percorrer cerca de Duzentos e trinta e cinco quilômetros a mais. Essas experiências lembram-me até a rodovia Transamazônica em época de chuva, especialmente nos meses de janeiro, fevereiro e março. Ah, ninguém conseguia se manter de pé naquela rodovia de chão avermelhado e escorregadio como sabão. E, pra quem não sabe, fique sabendo agora que, o professor do SOME, andava por toda essa Transamazônica, indomável e selvagem Transamazônica, percorrendo todos os municípios, desde Altamira, São Félix do Xingu, Brasil Novo, Vitória do Xingu, Medicilândia, Uruará, Senador José Porfírio, Anapu, Pacajá, e assim ia até alcançar Marabá, Curionópolis, Parauapebas e tantos outros municípios. Quem nunca ficou na estrada, com carro emperrado, pneu furado ou atolado? Sim, sim. Acham que tudo era um mar de rosas? Que o professor era um agente turístico? Que vivia passeando de graça de um lugar pra outro do Pará? Vida de professor do SOME não era mole não, mas o professor Abir Arievilo - posso garantir a vocês - não trocaria isso por nada e faria tudo outra vez. Não só ele, mas muitos outros professores que, hoje, estão aposentados, também fariam tudo de novo.
Enquanto Abir dirigia cuidadosamente na estrada, percebeu um fluxo intenso, mas lento, de carros que passavam por um terreno desconhecido para o professor. Era um terreno era acidentado e molhado, mas muitos motoristas iam por ali, na tentativa de atalhar o caminho e chegar mais rápido aos seus destinos. E pra piorar a situação, ainda havia carretas pesadíssimas circulando naquele trecho, empatando a passagem dos carros menores. Como não podia pular por cima das carretas, nem voar, o professor Abir procurou manter-se calmo, pois não queria passar por nenhum acidente, depois de ter sofrido tanto para chegar até ali. Ele estava ciente do que estava acontecendo, do tempo ruim, da chuva que havia caído e, cansado como estava... Cansado não, esgotado, só queria chegar à sua casa, mesmo que fosse lá pela madrugada, abraçar sua esposa e filha, tomar um gostoso banho, mudar aquelas roupas, colocar um talco Barla nos pés, um Herbíssimo nas axilas, deitar em sua aconchegante cama, ligar o ventilador turbo na velocidade máxima, puxar o lençol pra cima de si, se embrulhar dos pés á cabeça e, finalmente, dormir como uma pedra até duas da tarde do dia seguinte.
Sempre com o rádio ligado para descontrair, ouvia música com fita cassete, em seu som de última linha. É, pessoal, última geração para quem gosta de uma boa música. O professor era apaixonado pelo estilo musical da música popular brasileira, mas, de tanto ouvi-la, vez por outra, procurava revezar a MPB com outros estilos musicais. Aliás, o professor ainda curte muito MPB, principalmente em disco de vinil, aquele modelo original que só colecionadores têm. Eu disse que ele ainda curte música popular brasileira porque ele está bem vivinho da silva, com muita saúde, antenado com o mundo político, a educação e a arte. Ah, ele também mora na bela cidade das Mangueiras.
As horas passaram, mas finalmente chegou ao município de Santa Maria. Já era tarde da noite, e o professor estava cansado e com fome. Parou o carro em frente a uma pequena lanchonete de beira de estrada, que costumava atender clientes durante quase a noite toda. Abir olha para o proprietário e indaga:
- Boa noite! O que tem aí pra merendar?
- Boa noite, senhor! Temos hambúrguer, cachorro quente e pastel folheado. Acompanha suco também de maracujá, caju ou goiaba. Mas se não quiser suco, tem refrigerante.
- Quanto tá o cachorro quente com suco? Indaga o professor.
- Dá quatro real tudo, freguês!
- Tá bom. Então prepara um pra mim.
Depois de alguns minutos, e já com a barriga forrada, o professor Abir seguiu viagem rumo a Belém, rumo à sua casa.
Enquanto o professor do regular tem seu estresse subindo e descendo de ônibus, andando de uma escola pra outra, no meio de tantos carros e barulhos de buzina, correndo atrás de carga horária, o professor Abir Arievilo, assim como outros professores do SOME, percorrem quilómetros e mais quilómetros pra chegar numa escola, para dar de aula. Atravessa pontes quebradas, rios ensandecidos, estradas esburacadas, tempos chuvosos, ruas empoeiradas e lamacentas. O professor não é nenhum masoquista, claro que não, mas esse tipo de atividade dava a ele, ao mesmo tempo, uma espécie de cansaço e disposição, melancolia e euforia, sofrimento e prazer, satisfação. Quando se gosta do que se faz, nunca é demais, nunca é pesaroso, mas edificante. Tudo o que ele fazia sempre era um novo desafio. Mas o desafio maior sempre era o de estar longe da família, da esposa, da filha. Isso porque Abir era e ainda é um homem de família, que quer sua prole participando de todas as suas aventuras e conquistas. Foram mais de mil e quinhentos quilômetros percorridos. O que fez este professor viajar sozinho tão longa distância? Enquanto vai se aproximando de Belém, ele fica imaginando qual será o próximo módulo. Será que é tão longe como este? Será que a prefeitura irá arranjar uma casa pros professores? Será que vamos ter que ficar negociando, e negociando, e negociando com a prefeitura? Essas preocupações vão e vêm na cabeça do professor, mas o SOME das décadas de 1980 e 1990 era assim mesmo, viagens pra perto, viagens pra longe, viagens pro Marajó, viagens pro baixo Amazonas, viagens pra Viseu, viagens pra Transamazônica. Todas essas viagens eram controladas por um departamento administrativo em Belém, conhecido como Coordenação do SOME, que entregava aos professores um cronograma de módulos que compunham quatro municípios por polo, num período correspondente a um ano letivo e, aproximadamente, dois meses por cada módulo, entre feriados e recesso escolar. E esses municípios poderiam ser todos perto ou todos longe, ou alguns perto e outros longe. Se isso era uma questão administrativa e o calendário letivo tinha que ser cumprido, fazer o quê?
Ao trabalho. E, lá se vai, mais uma vez, Abir Arievilo pegar a estrada para mais um compromisso com a educação nos rincões do Pará. Mas as folhas de papel chamex acabaram, a tinta da impressora também, e o narrador está exausto, não consegue mais pensar no que escrever. Até o notebook tá pedindo pra dar um tempo. Portanto, vamos deixar para outro momento a continuidade dessa história. Aliás, essa será uma outra história a ser contada.
*O autor é poeta e ex-professor do Sistema de Organização Modular de Ensino - SOME.