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domingo, 24 de julho de 2022

UMA EXPERIÊNCIA NOS RIOS DE ABAETETUBA


     Isto não é ficção, é uma história real, de pessoas reais que aconteceu nos idos de... algumas décadas passadas. E vamos começar por onde se deve começar. Pois bem, essa história tem seu ponto de partida em Belém do Pará, na secretaria estadual de educação. Não é um conto. É uma crônica da vida como ela é. Sem fantasias, sem estrelismo, sem super-heróis com capas voadoras e olhos com poderes de energia nuclear. Então, tudo começa assim. O Sistema de Organização Modular de Ensino – SOME, política pública que tem 42 anos de atividades pedagógicas, pelos interiores do Estado do Pará, abriu processo seletivo em 2011 para o referido setor da Secretaria Estadual de Educação – SEDUC, sendo que, na ocasião, foram chamados diversos professores para atuarem no ensino médio.



     Dentre os professores, um se apresentou para o coordenador geral e este lhe disse que iria manda-lo para uma comunidade quilombola ribeirinha, no município de Abaetetuba. O professor olha para o coordenador a sua frente e, sem esperar mais nada, pergunta se seria possível lhe enviar para um local onde houvesse estrada, chão batido, onde pudesse pisar com segurança sem correr o risco de afundar os pés literalmente  nas águas desconhecidas do Abaeté. Pois assim, dizia, trabalharia muito mais feliz. No entanto, recebe a notícia de que só havia vaga naquela localidade para onde foi designado. Era pegar ou largar.



     Não houve jeito, teve que se contentar com o que a sorte lhe reservara. Levantou-se, deu meia volta e despediu-se. Tomando o caminho da rua, foi para casa muito pensativo, muito provavelmente, pensando na aventura que seria essa viagem por águas completamente desconhecidas para ele. Será que não corria o risco da embarcação afundar? Será que isso já não tinha acontecido antes com algum outro professor, ou outra pessoa qualquer?



     Aquele professor nunca havia feito qualquer tipo de viagem por rio; era homem da cidade, urbano, gostava de morar na selva de pedras, estava acostumado com o dia-a-dia das buzinas infernais, com o congestionamento do trânsito, com a poluição do cigarro e das fábricas que vão envenenando o ser humano de pouquinho em pouquinho sem que perceba, ou, se percebe, já nem liga.



     Aquela notícia da sua partida imediata chegara aos seus ouvidos na quinta-feira, e, no domingo, já teria que estar viajando para a sede do município, porque, na segunda-feira, bem cedinho, teria que se deslocar para a localidade onde iria exercer suas funções de educador. E não teve jeito. Teve que ir de rabeta mesmo. E o que é uma Rabeta? É um pequeno motor de propulsão que, acoplado na traseira de pequenas embarcações ou barcos, é conduzido manualmente, com a ajuda de um bastão que determina as direções. Por extensão, é uma pequena embarcação com esse motor, ou seja, uma canoa motorizada.


    No domingo, no horário da tarde, pega o ônibus que o levaria à rodoviária, no centro de Belém, em São Brás. Ao chegar, encontra com alguns professores que iriam para o mesmo município que ele. Apresentaram-se, foi um momento de descontração e entrosamento do grupo. Tomaram o ônibus e partiram rumo à Abaetetuba. A viagem não foi longa, mas deu tempo de conversarem e se conhecerem melhor. Ao chegarem à sede do município, dirigiu-se ele e parte dos professores para um hotel, onde passariam a noite. Outra parte do grupo foi para a casa de amigos ou parentes.



     No outro dia, bem cedo, acordam e encaminham-se para o refeitório, a fim de tomar o café da manhã com pão quentinho e manteiga. Todos já devidamente preparados com suas mochilas nas costas. A equipe desse professor era composta por três pessoas: ele e mais dois professores. Depois do desjejum, um dos amigos toma a iniciativa de convidá-los para se deslocarem até um porto particular, de onde sairiam numa rabeta em direção à localidade onde foram lotados.



     Ao chegarem ao porto, o professor percebe rapidamente que havia vários outros professores e professoras procurando se arrumar no pequeno casco. Todos iriam viajar no mesmo casco que ele? Com certeza, o professor se fez essa pergunta várias vezes, quase não querendo acreditar naquela possibilidade. Quantos? Seis, sete, dez? E todo mundo se equilibrando, encostado um no outro, de costas para as águas. Quem sabe, aquele professor estivesse pensando: “Será que vale a pena passar por tudo isso pra ganhar um pouco mais, uma ajuda de custo, um adicional no contracheque?”.  Mas logo, logo, o gelo é quebrado e alguém apresenta o rabeteiro (o que pilota a rabeta) e convida o professor para entrar no casco. Com muito cuidado, conseguiu descer da ponte do porto para dentro da rabeta, agasalhando-se com alguma dificuldade junto dos outros colegas. Que momento sublime! Inusitado! Esses e outros pequenos momentos que ninguém podia imaginar, mas que iriam, depois de décadas, entrar para os anais das memórias do SOME. E que memórias. A história se imortaliza nos pequenos e quase despercebidos detalhes, coisas tão simples das quais muita gente pode achar que não vale a pena se debruçar sobre os papeis em branco, com pena e tinta, numa escrivaninha do quarto de dormir e escrever, e escrever, e escrever até a noite findar e os primeiros raios de sol adentrarem pelos vidros da janela e desmancharem a penumbra do quarto. Não! A obra não pode ficar pra depois, tem que ser escrita para que não se perca nas esquinas de pedras.



     Era a primeira aventura no mar daquele professor. Era um marinheiro de primeira viagem, estava inseguro sim, porque aquilo tudo era desconhecido para ele. Mas, ao se deparar com a tranquilidade dos outros que estavam a bordo, conversando animadamente, trocando informações, desejou uma boa viagem a todos e aceitou o seu destino. O rabeteiro deu a partida no motor, que roncou forte, soltando um pouco de fumaça; o barco começou a se movimentar e a se afastar do porto, enquanto o professor segurava firmemente com suas mãos na beira do casco atrás de si. Era visível o seu nervosismo, como que sentisse um calafrio passando entre suas espinhas. Ao mesmo tempo, via a tranquilidade das professoras e de seus colegas, pareciam acostumados àquela vida.



       - Seja o que Deus quiser! Pensou.



     Já subindo o rio, a rabeta se encontrava, volta e meia, com pequenas ondas, movimento que as águas faziam quando se deparavam com as embarcações. Esse balanço das águas que faziam chacoalhar a pequena embarcação provocava náuseas, enjoo e medo no professor, que via, assustado, o barco subir e descer o rio. Após duas horas e meia de viagem e um pânico silencioso vivido pelo nosso personagem principal (acho que somente ele sentiu isso), finalmente o rabeteiro encostou o casco na ponte da casa dos professores, desligou o motor e o barulho que estava deixando todo mundo surdo e sem poder conversar, cessou. Agora tudo era completo silêncio que dava pra ouvir o casco roçando a ponte e a corda sendo amarrada no tronco. Todos descem para a ponte em silêncio, carregando suas mochilas e, quem sabe, dentro delas, muitos sonhos, quilos e quilos de sonhos.



     Aquilo tudo foi uma verdadeira adrenalina, mas apenas o início da adrenalina para aquele professor. Uma experiência que ele não iria esquecer jamais em todos os anos de sua vida, passasse por onde passasse, estivesse onde estivesse, fizesse cinco ou quarenta anos, mesmo que conhecesse outros lugares, jamais esqueceria aquela inusitada experiência nos rios de Abaetetuba.



     É! Há certos caminhos que caminhamos, em que a educação nos faz refletir sobre o quão grande ela é. E percebemos que ela precisa de nós para melhorar o homem. Por isso, parodiando Milton Nascimento quando canta “todo artista tem que ir aonde o povo está”, eu digo: “Todo educador tem que ir aonde o aluno está”. E ponto final.

 

Por Prof. Ribamar Oliveira

Revisão Professor e Poeta Carlos Alberto Prestes

Belém, 24 de julho de 2022

3 comentários:

  1. 𝙐𝙢 𝙘𝙤𝙣𝙩𝙤 𝙦𝙪𝙚 𝙖𝙪𝙢𝙚𝙣𝙩𝙖 𝙤 𝙧𝙚𝙨𝙥𝙚𝙞𝙩𝙤 𝙖𝙤 𝙎𝙚𝙧 𝙦𝙪𝙚 𝙗𝙪𝙨𝙘𝙖 𝙨𝙪𝙨𝙩𝙚𝙣𝙩𝙤, 𝙖𝙤 𝙀𝙙𝙪𝙘𝙖𝙙𝙤𝙧 𝙦𝙪𝙚 𝙧𝙪𝙢𝙖 𝙖𝙤 𝙙𝙚𝙨𝙘𝙤𝙣𝙝𝙚𝙘𝙞𝙙𝙤 𝙚𝙢 𝙗𝙪𝙨𝙘𝙖 𝙖𝙡𝙪𝙣𝙤𝙨. 𝙐𝙢𝙖 𝙣𝙖𝙧𝙧𝙖𝙩𝙞𝙫𝙖 𝙨𝙤𝙗𝙧𝙚 𝙖 𝙀𝙙𝙪𝙘𝙖çã𝙤 𝙖𝙩𝙧𝙖𝙫𝙚𝙨𝙨𝙖𝙣𝙙𝙤, 𝙥𝙚𝙧𝙘𝙤𝙧𝙧𝙚𝙣𝙙𝙤 𝙡𝙖𝙗𝙞𝙧𝙞𝙣𝙩𝙤𝙨 𝙙𝙚𝙨𝙘𝙤𝙣𝙝𝙚𝙘𝙞𝙙𝙤𝙨!

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  2. 𝙀𝙭𝙘𝙚𝙡𝙚𝙣𝙩𝙚 𝙩𝙚𝙭𝙩𝙤 𝙣𝙖𝙧𝙧𝙖𝙩𝙞𝙫𝙤, 𝙋𝙧𝙤𝙛𝙚𝙨𝙨𝙤𝙧 𝙍𝙞𝙗𝙖𝙢𝙖𝙧.

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  3. Por mais textos e mais professores como este 😘

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