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quarta-feira, 3 de março de 2021

CRÔNICA DE UMA TRAGÉDIA ANUNCIADA: O HOMEM DO SÉCULO VINTE E UM

 

 

        Quão frágil e delicada é a vida. Na verdade, não passa de um sopro de vento que vem, passa por nós, tão rapidamente, que quase nem percebemos. E, aqui, neste mundo, onde mais sobrevivemos do que vivemos, a vida pode ser representada por várias simbologias. A flor, por exemplo, representa a vida muito bem. Ela é frágil, bela na sua curta juventude, mas, dias depois, começa o processo de envelhecimento, e ela murcha rapidamente e, com isso, vai perdendo a cor, a resistência, o vigor, até secar e definhar. E quem liga pra essa flor depois que ela definha? Quem se importa? Há outras tantas à disposição.


        Essa lógica cruel faz parte do pensamento lógico dos povos civilizados, ou, pelo menos, que se dizem civilizados. Mas não somente dos povos civilizados, e, sim, do próprio ser humano. Está em seu DNA desde a sua primeira respiração, e vai crescendo dentro dele à medida que se desenvolve. A vida é, sim, tão efémera, tão inconstante, que me pesa reconhecer essa verdade. Uma verdade dita, não apenas, por cientistas sócias, ou por religiosos nos púlpitos das igrejas, mas, também, escritas e imortalizadas pelas penas de nossos poetas. Que o diga Gregório de Matos em seu poema Inconstância das coisa do mundo:


“Nasce o Sol e não dura mais que um dia,

Depois da luz se segue a noite escura,

Em tristes sombras morre a formosura,

Em contínuas tristezas a alegria.

Porém, se acaba o sol, por que nascia?

Se é tão formosa a luz, por que não dura?

Como a beleza assim se transfigura?

Como o gosto da pena assim se fia?

 

Mas no sol, e na luz falta a firmeza,

Na formosura não se dê constância,

E na alegria sinta-se a tristeza,

Começa o mundo enfim pela ignorância,

E tem qualquer dos bens por natureza.

A firmeza somente na inconstância.”


        São pertinentes as palavras do poeta, as interrogações quando ele reflete sobre a brevidade da vida, utilizando-se de figuras de linguagem para evidenciar esses contrastes. Pode-se observar uma latente adversidade entre claro e escuro, sol (dia) e noite, entre luz e escuridão, que se apartam um do outro, como que por maldição, como dois amantes condenados ao desterro. Assim é quando tratamos de vida e morte. Nunca se abraçam. Quando uma chega, a outra sai, e não há como remediar essa verdade. Por isso, nos perguntamos: Por que o homem se acostumou com a morte? Por que não se indigna diante de uma pessoa caída aos seus pés, ensanguentada, após ser atropelada por um desses BRTs da vida. Não é a vida maior que a morte? Vemos a presença da morte em todos os cantos da cidade. Não há um só lugar que escape da sua presença. Mas o que causa indignação não é o fato da morte estar presente na vida das pessoas. Não! Não é isso. O que causa indignação é a indiferença do ser humano diante de um corpo sem vida no chão, diante de uma tragédia anunciada. Nós simplesmente nos desviamos do corpo e seguimos em frente, sem prestar muita atenção, apenas preocupados com o problema que nos tirou de casa para a rua. Não sabemos mais chorar. Até pouco tempo, em regiões como o nordeste, se pagava as carpideiras, mulheres contratadas para chorar e rezar sobre o caixão de algum ente querido. Isso acontece, talvez, porque, realmente, estamos nos tornando seres robotizados, cibernéticos, tão preocupados com os nossos próprios problemas, com as nossas lutas pessoais, que não percebemos que estamos nos tornando profundamente egocêntricos, orgulhos, individualistas, avarentos. Não percebemos que o mundo capitalista está distorcendo o nosso caráter, e estamos nos tornando mais irracionais do que os próprios animais irracionais, porque o animal irracional mata para se alimentar, mas nós matamos os nossos semelhantes pra quê? E por quê? O quê que o capitalismo está fazendo com as sociedades, senão, provocar as desigualdades de oportunidades, a competição desleal, o enriquecimento de uns poucos e o empobrecimento de milhares, passando como um rolo compressor por cima de quem não aguentar ficar de pé.


        Estamos na era do individualismo, do homem voltado para si mesmo, pro seu próprio umbigo, e nem sabe que, na verdade, tudo o que está à nossa volta, nos atinge. A miséria gera a violência, a violência gera toda sorte de crimes, e os crimes geram a morte. Todos perdem, o rico, o pobre, o branco, o pardo, o preto, o amarelo, porque ninguém pode se trancar pra sempre dentro de uma bolha ou de um carro blindado e viver. Neste contexto, vem à mente a palavra “Liberdade”. Quem é livre? Verdadeiramente livre? Somos todos encarcerados, não pelas circunstancias da vida, mas por causa de nossas escolhas erradas, porque as circunstâncias da vida são consequências de escolhas erradas. Não pensamos num bem coletivo; pensamos em nós: eu e minha família, e esquecemos de que onde houver um resquício sequer de miséria, haverá também um resquício de violência, que se avolumará, aos poucos, até se tornar incontrolável.


        De que adianta morar em uma bela casa, num condomínio fechado, com segurança interna vinte e quatro horas, com câmeras pra todo lado e controle de entrada e saída de pessoas, se, lá fora, a violência te espera? Se uma hora vai ter que sair do casulo e se expor ao perigo das ruas? A violência vem de todos os lados e de todas as formas: há violência psicológica, violência física, violência patrimonial ou abuso financeiro e econômico, adoção ilegal, aliciamento sexual infantil on line, bullying, cyberbullying, discriminação, exposição de nudez sem consentimento, negligência e abandono, pornografia infantil, tortura, trabalho infantil, tráfico de crianças e adolescentes, violência institucional, violência sexual, etc., etc., etc. Todas são profundamente nocivas à dignidade humana, porém, ao meu ver, a violência institucional causa indignação ainda maior, uma vez que esta representa qualquer tipo de violência observada no contexto das instituições públicas ou privadas, com fins lucrativos, sem fins lucrativos, praticadas com pessoas de ambos os sexos e de qualquer idade. Essas instituições, nós conhecemos bem: são hospitais, escolas, postos de saúde, delegacias, poder judiciário, poder legislativo, poder executivo, prefeituras, igrejas, etc. Por que causam indignação maior? Porque são instituições que deveriam proteger o cidadão ou a cidadã, mas, repetidamente, têm sido alvos de noticiários que denunciam atitudes incompatíveis com as suas funções, envolvendo-se em escândalos de corrupção, desvio de verbas, autoritarismo, selecionando quem será atendido ou não, maus tratos, favorecimento ilícitos, chantagens, pedofilia, ameaças e muito mais. Deveríamos nos escandalizar com isso? Ou as constantes repetições de notícias ruins têm cauterizado nossas funções mais sensíveis, que chegamos a comentar que “isso é normal?”   


        Que juízo fazer de um agente público que deveria proteger mulheres vítimas de violência sexual, física, ou psicológica, que se veem ameaçadas por cônjuges, dentro da própria casa? Esses agentes, que deveriam garantir-lhes um atendimento humanitário, preventivo e reparador, mas, ao contrário, por falta de preparo ou de caráter mesmo, desdenham da vítima, muitas vezes, fazendo com que se sintam responsáveis pela violência sofrida. A quem recorrer? Em quem acreditar? Quem garantirá que aquela vítima não irá ser agredida quando retornar à sua casa? Quem deterá o agressor? A polícia? O juiz? Um registro de ocorrência dado a ela depois do depoimento? O político corrupto que tenta criar e aprovar leis no apagar das luzes para não ser alcançado pela justiça?


        Como entender a cabeça de alguém que chega em casa pela manhã, a esposa e dois filhos pequenos estão na mesa da cozinha tomando café com leite e pão, todos com sorrisos nos rostos, agradecidos a Deus pelo desjejum e, quando o pai entra, os filhos correm pra abraça-lo e dizem “bom dia, pai!”. O pai não demonstra reciprocidade, simplesmente vai até o quarto do casal, apanha um revolver calibre trinta e oito, volta para a cozinha e, sem dizer uma única palavra, aponta a arma para a esposa e atira três vezes. A esposa cai, ali, no chão da cozinha, ensanguentada, o sorriso desaparece do rosto; os dois filhos ficam sem entender nada, olhando aquela trágica cena, paralisados. O pai, um policial que deveria proteger a todo custo sua família contra a violência das ruas, tira a vida da própria esposa, sai para a rua, pega o carro e se dirige para a frente do batalhão da polícia militar. Freia o carro bruscamente, desce, anda para o meio da rua, aponta o revolver para sua cabeça e atira sem vacilar. Cai, ali, naquele asfalto sujo, sem vida.

        

        Pra ele, tudo terminou ali. A vida, a família, o trabalho, os amigos, inimigos. Terminou a fuga de algo que só ele sabia. Mas a história daquela família não pode se resumir, apenas, ao último momento, ao último dia. Há, pra trás, toda uma história que fala do primeiro encontro, do namoro, de momentos felizes, do casamento, do nascimento dos filhos, de planos e projetos pro futuro, da formação de uma família. O que aconteceu com os relacionamentos? Onde pararam de se comunicar? O que foi feito do amor? A individualidade, o egoísmo, sentimentos baixos, mesquinhos, fazem com que fiquemos cegos para os problemas de nossos vizinhos, que pedem socorro, mas não conseguimos identificar esse grito angustiado e mudo, porque não prestamos atenção nos rostos, nos olhares, nas fisionomias. Não temos tempo pra isso.


        E, assim, o homem caminha para a sua própria destruição, dirigindo o carro, velozmente, rumo ao precipício que o aguarda de braços abertos, porque, o que o ser humano tem de mais valioso – o amor ao próximo – sentimento que deveria estar impregnado no seu coração, está desaparecendo e dando lugar a um homem revestido de fios, baterias, graxas, parafusos, chips, memórias programadas. Esse é o homem do século vinte e um.

 

Carlos Prestes

Joinville (SC), 3 de março de 2021

   


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