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segunda-feira, 5 de junho de 2023

DOIS PROFESSORES E UMA EXPERIÊNCIA MARCANTE EM NOVA OLINDA

 

               *Carlos Alberto Prestes

               ** Ribamar Oliveira 

      

       Quem é o profissional, de verdade, que atua na área da educação, em Belém e seus arredores, bem como no interior do estado do Pará, que não conhece ou nunca ouviu falar do SOME? Ignorar completamente esta importante política pública voltada para a educação na Amazônia paraense, é não ter quase compromisso nenhum com o ensino público gratuito; é não buscar conhecimento, informação que possa lhe dar suporte suficiente para enfrentar as batalhas que tem que travar no âmbito escolar, entre profissionais da área, na sala de aula com seus alunos e alunas e, mesmo, em debates públicos, congressos, seminários. 

 

     A educação tem um corpo só, mas vários órgãos, com funções múltiplas e variadas. Sem esses órgãos em movimento, o corpo não teria como se desenvolver, crescer e se multiplicar. 

 

    Há muita coisa em jogo que depende dessa concepção, do entendimento de que a educação é a guia mais sensata, eficiente e eficaz para o crescimento de uma nação, de uma sociedade, de toda uma população. Não há outro caminho onde se possa obter o aprendizado da ética, do respeito, dos valores morais, espirituais, intelectuais, familiares e pessoais além do da educação. Fora da trilha deste caminho, só resta a barbárie, a desconstrução de princípios eternos em favor do imediatismo materialista e da ânsia de poder, que faz do homem um ser insensível, destruidor do seu igual, da sua própria espécie, uma vez que é na educação que está implícita a formação do caráter, de valores, de princípios, de respeito, interação, socialização, coletividade, relações familiares, sociais e pessoais. 

 

       Por isso, não se pode admitir dissenção entre grupos de educadores; não se pode admitir boicote entre profissionais do ensino regular e ensino modular contra uma ou outra política educacional. Todos devem unir-se e ajudar-se, porque todos trabalham, ou deveriam trabalhar, em prol do desenvolvimento do caráter do ser humano, a fim de que haja uma sociedade igualitária em todas as suas instâncias. Quem ainda não entendeu isso, também ainda não entendeu o que é educar, pois isso exige um compromisso comigo mesmo e com o outro. 

 

       Por isso, afirmo, como muitos já devem saber, que o Sistema de Organização Modular de Ensino – SOME, é uma política pública que atende os filhos dos camponeses, quilombolas, assentados, indígenas, ribeirinhos, praianos entre outras categorias dos interiores do Estado do Pará, oportunizando a estes, um ensino que busca a sua qualidade na medida do possível. 

 

       Em abril, este sistema de ensino, completou seus quarenta e três anos de atividades pedagógicas, voltadas para o ensino médio, tendo, em alguns municípios, funcionado como fundamental maior, e, atualmente, somente no município de Abaetetuba continua nesta área de ensino. 

 

     O SOME é uma política pública genuinamente paraense que procura democratizar, valorizar, qualificar e ampliar o ensino público e gratuito na Amazônia paraense. E é neste contexto que apresentamos relatos de histórias vivenciadas por nossos educadores, durante suas jornadas pelo interior do estado. Relatos que nos ajudam a ter uma ideia da dimensão da importância desta política educacional nas várias regiões de nosso estado. Através destes, conseguimos mensurar os constantes desafios enfrentados por educadores durante o desenvolvimento de suas atividades pedagógicas. Estes relatos falam disso. Das tantas problemáticas enfrentadas pela educação, enquanto ensino público gratuito. A educação indo e vindo em transporte público e embarcações, correndo estradas, vicinais, rios, de região em região, deparando-se, muitas vezes, com realidades nunca vivenciadas, assim como a má vontade política do poder público que se reflete em péssima infraestrutura, tanto na área educacional quanto na área social e econômica, em muitas comunidades, o que contribui para o avanço da pobreza e miséria. 

 

       Pois bem, aqui damos voz e visibilidade a mais um caso acontecido com dois professores do SOME no interior do estado. E o relato começa assim: no início da década de 1990, uma equipe formada por dois professores do Sistema Modular, professor Emos, de Língua Portuguesa, e professor Abir Arievilo, de História, foram designados para exercer suas práticas educativas na localidade de Nova Olinda, que faz parte do município de Tomé Açu, no nordeste paraense, cuja característica marcante na economia da região era a pimenta do reino, inclusive a nível de exportação.  

 

       Ao se apresentarem na escola sede, situada na localidade de Forquilha – nome curioso e típico da região –, do mesmo município, foram informados que, durante o recesso, a casa não havia recebido nenhuma limpeza por parte dos responsáveis. Portanto, estava bastante suja. Também não possuía uma pessoa para fazer as atividades domésticas, e isso seria o calo no pé dos dois durante o I Módulo. 

 

     Era a primeira vez que iriam trabalhar naquela localidade. Ao entregarem suas cartas de apresentação à diretora da escola-sede, foram comunicados que ainda tinham que enfrentar um ramal com, aproximadamente, sete quilômetros para chegar à Vila de Nova Olinda, e que, para isso, teriam que pegar moto táxi, para se deslocarem até a região onde iriam ficar por cerca de dois meses, a fim de completarem as disciplinas daquele módulo. 

 

       Finalmente, partiram rumo à Nova Olinda, cujo nome tem origem no grego Olyntha que significa "figo verde". O nome supostamente foi originado a partir da exclamação “ó linda”, “ó bela”, feita por um explorador galego ao ficar encantado com a beleza da cidade pernambucana que acabou por ser chamada de Olinda. 

 

       Chegaram por volta do meio-dia na localidade, conseguiram a chave da casa que estava na Escola de funcionamento do SOME e partiram com suas mochilas para a casa dos professores. Ao abrirem a porta, depararam-se com uma casa totalmente assolada, suja, poeirenta, mofenta, o que trouxe a eles um grande desânimo pelo fato de estarem cansados. Pra complicar mais ainda a situação, as aulas já começariam naquele mesmo dia, às treze horas, o que seria impossível acontecer com tal situação em que encontraram a casa. 

 

       Foram atrás de alguém que pudesse fazer a limpeza da casa, mas não conseguiram ninguém disposto a ajuda-los. Àquela altura, a fome já devorava seus estômagos, que gritavam por comida. Mas como iriam fazer almoço se nem gás havia na casa? Que recepção calorosa da escola aos professores! Praticamente, estavam entregues à própria sorte. Nem escola, nem secretaria de educação, nem prefeitura, nem comunidade haviam estendido a mão àqueles dois professores. Esse é o mapa da educação no Pará e em muitas regiões do Brasil afora. 

 

     A salvação! Uma alma boa haveria de se salvar! Como a Diretora era vizinha da casa e reconhecendo a situação em que se encontravam, ficou com muita dó dos dois e chamou-os para fazerem uma “boquinha” em sua casa, o que prontamente aceitaram. Durante o almoço, comunicaram à diretora que, naquele dia, só começariam as aulas pela parte da noite, pois iriam fazer a limpeza da casa no horário da tarde. A diretora não protestou, pois tinha inteira convicção dos problemas da casa. E, assim, ficou decidido. 

 

     Começa a faxina. Já em casa trocaram as roupas de viagem por bermudas e blusas leves, e começaram a jogar água em toda casa. Nesse instante, deram-se conta de que não tinha vassoura, nem sabão, o que fez com que um dos professores saísse atrás de vassoura e sabão, naquele horário, rezando para encontrar algum comércio aberto. Próximo da casa dos professores tinha um estabelecimento comercial fechado, mas tudo indicava que os donos moravam no mesmo local, o que encorajou o professor a bater à porta no intuito de ser atendido. Deu certo. Alguém apareceu e o professor pediu desculpas pelo incômodo, mas disse que era professor do modular e tinha acabado de chegar de viagem, e precisava de material de limpeza para a casa que estava imunda. Não teve problemas, a pessoa do estabelecimento comercial o atendeu com cortesia e lhe vendeu tudo o que precisava, naquele momento. Comprou duas vassouras, dois detergentes de louças, um roldo comum, uma caixa de sabão em pó. Agradeceu e foi embora de volta para casa. Com isso, foi possível, realmente, fazer a limpeza da casa. Uma limpeza que não se fazia a mais de dois meses. 

 

       Assim passaram aquelas horas da tarde. Dividiram as tarefas. Cada um limparia dois cômodos, já que a casa tinha cozinha, dois quartos e sala. Terminaram toda a limpeza quando já era final de tarde, mas o objetivo foi alcançado. A casa estava com outra aparência, o odor havia sumido, estava cheirando a amaciante de roupa, um brilho, ou quase isso. 

 

      Nem bem respiraram, apareceu logo outro problema: cadê o gás do botijão? Não tinha gás no fogão. Um fogão com botijão sem gás é o mesmo que encher água em balde furado. Correram à casa da diretora, que lhes comunicou que, infelizmente, teriam que comprar o botijão com o dinheiro do próprio bolso. Fizeram, mais uma vez, coleta, tendo que arcar com todas as despesas que iam aparecendo. 

 

       Saíram, novamente, em busca do bendito gás. Andaram um pouco e, mais adiante, encontraram uma distribuidora de gás, mas com um valor um tanto salgado de mercado, já que não estavam na capital Belém, e sim no interior, onde as coisas chegavam com mais dificuldades. Não tinham escolha. Era comprar o gás ou ficar sem poder fazer comida, café da manhã, chá quentinho. 

 

       Quando, finalmente, resolveram essas questões, escolheram os quartos onde cada um ficaria, bem como a divisão dos valores gastos até então. Tudo foi feito em comum acordo, mas o Abir ainda tinha a velha mania de querer levar vantagem nas contas que iam fazendo, talvez com a intenção de gastar menos. Não é um caso isolado. Acontecia muito nessas viagens do modular, uns querendo ser mais espertos que outros. Coisas do modular. Relações sociais e pessoais que precisam amadurecer. Afinal, todos estão no mesmo barco, não? Passam pelas mesmas dificuldades, os mesmos aperreios. 

 

       Veio a noite, os dois professores tomaram banho, se arrumaram e se prepararam para o turno da noite na escola. Mas antes de irem à escola, compraram dez ovos e um quilo de farinha, fritaram cinco ovos e deixaram os outros cinco para quando retornasse da escola. Afinal, com certeza, estariam com muita fome. 

 

       A partir do dia seguinte, as coisas foram se normalizando para Emos e Abir na localidade de Nova Olinda, mas com alguns entraves entre os dois. Entre eles, a questão financeira, já que o Abir era, como se diz, “mão fechada” ou “mão de vaca” e em tudo queria economizar sua gratificação. E, quando isso acontecia, sobrava para o Emos, que tinha que gastar mais. E ainda tinha a questão dos afazeres domésticos. Como na casa não tinha uma doméstica paga pela prefeitura, os afazeres ficavam por conta das pessoas que estavam dentro da casa dos professores, e, às vezes, havia professores da rede municipal. No entanto, neste módulo, estavam somente os professores Emos e Abir. Bom por um lado, ruim por outro, pois tinham que arcar com as despesas sozinhos, bem como com a limpeza da casa. 

 

       Mesmo procurando racionalizar e dividir os afazeres, o Abir tinha dificuldade em ajudar nestes assuntos, sempre evitando colaborar, arrumando alguma coisa pra fazer na rua, ou trabalho de aula, ou dizendo-se cansado e por aí vai. Pequenas coisas que causavam problemas sérios de cooperação e socialização, e que são sentidos por alguns educadores quando chegam a determinadas localidades sem apoio necessário das prefeituras, como neste caso, que causa problemas internos nas equipes, que podem até culminar em desunião, brigas, mágoas, conflitos que, por muito tempo, e até anos, ficam mal resolvidos. 

 

       Como podem ver, este é apenas um pequeno vislumbre do que esperava pelos professores nos vários rincões do estado. Nunca se sabia o que os aguardava; nunca se sabia se iriam vivenciar momentos difíceis ou alegres nas comunidades. Mas eles iam, e ensinavam, e ajudavam a libertar muitas mentes que estavam na escuridão, mesmo correndo o risco – como aconteceu algumas vezes – de terem que sair às pressas de um município, por causa de ameaças a sua vida. 

 

       É isso mesmo o que os leitores atentos ouviram ou leram! Atentados contra a vida de professores, porque parte da tal de uma sociedade podre, metida a moralista, mas no fundo, apenas travestida de um falso moralismo, não admite que a população menos afortunada seja liberta de suas garras. 

 

     Então, o que se conclui aqui com esse e outros relatos, é que temos uma educação lutando, continuamente, com unhas e garras, contra a cultura do poder, contra uma oligarquia mesquinha que se imagina com sangue azul.


* Os autores são escritores e ex professores do Sistema de Organização Modular de Ensino - SOME

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