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segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

E POR FALAR EM SAUDADE

 




    *Carlos Alberto Trindade Prestes                     



















Velhos tempos... Velhos dias. Existem coisas memoráveis que não podem passar despercebidas para quem nasceu nos anos sessenta, viveu a adolescência nos anos setenta, a juventude nos anos oitenta, e a maturidade nos anos noventa. O século XXI é uma junção das experiências de todas essas décadas vividas tão intensamente por cada um de nós: as brincadeiras de infância, o sítio do Pica-pau amarelo visto na tevê em preto e branco, as imagens de Belém e a vinheta que tocava na abertura da programação da tevê, as brincadeiras de pira e Trinta e um alerta na rua de casa, sem asfalto, com valas a céu aberto e pouca iluminação; as idas e vindas pra escola de primeiro grau perto de casa, a farda escolar com camisa branca de manga curta, feita de tergal, o nome da escola e o símbolo do Pará no bolso; a calça azul marinho, bem passadinha no ferro de engomar, tudo isso feito em casa, na máquina de costura Elgin, por nossas mães; o sapato escolar da moda era o Vulcabrás preto, com ou sem cadarço, de borracha. Depois veio o segundo grau nas escolas tradicionais, entre elas o colégio Paes de Carvalho, o Augusto Meira, o Souza Franco, o Deodoro de Mendonça, o Orlando Bitar, o Justo Chermont, o Lauro Sodré, o Pinto Marques, entre tantos e tantos espalhados pelos bairros de Belém. Naquele tempo, passávamos a melhor roupa para ir pro cinema num dia de domingo à tarde. Ficávamos ansiosos por chegar o fim de semana, pegar o ônibus e poder desfrutar de um cinema Olímpia ou o Palácio na Praça da República, o Nazaré e o Iracema na Praça Justo Chermont, o Paraíso e o Vitória na Pedreira, o Catalina na base aérea de Val-de-Cães, o Cine Guarany, hoje anexo do Ministério Público na Cidade Velha, o Cine Independência na avenida de mesmo nome, o Cine Aldeia do Rádio na Rua Conceição (atual Fernando Guilhon, no Jurunas), o Cine Art e o Cine Brasilândia na Avenida Senador Lemos, o Cinema Guajarino em Mosqueiro, o Guanabara em Icoaraci. Ah, são tantas as recordações de um tempo tão bom que passou.


Quando chegamos à universidade, parecia que algo extraordinário havia acontecido. O caminho até lá era longo e espinhoso. Trabalho de dia, cursinho pré-vestibular à noite, corujinha, corujão, estudo em casa que entrava pela madrugada nos finais de semana, concorrência nos cursos ofertados, muita gente pra poucas vagas, resultado, comemoração pra uns, tristeza pra outros, piroca o cabelo, quebra ovo na cabeça, trigo, maisena, cachaça, e a marchinha do Pinduca “põe a vitrola pra tocar que eu passei no vestibular!”, uma verdadeira peregrinação. Depois da euforia, vem a realidade: estudo e mais estudo que ocupavam boa parte do dia na faculdade; trabalhos escolares, seminários, pesquisas, defesas, leituras de livros e apostilas, greve de ônibus, protesto de estudantes por meia passagem, e, assim, íamos levando até a formatura, quatro anos depois. Vencida mais essa etapa, agora, com o diploma na mão, era hora de correr atrás de emprego. Essa é a vida de estudante da rede pública.


Depois da formatura, muitos amigos e amigas se dispersaram pelo mundo afora. Uns fizeram concurso público e foram pras escolas públicas municipais, outros para as estaduais, outros para escolas particulares, outros para órgãos administrativos do governo, outros fizeram mestrados e doutorados e foram pras faculdades trabalhar com docência e pesquisa, outros trilharam caminhos diferentes, e outros foram para o Sistema de Organização Modular de Ensino, o SOME, uma política pública educacional comprometida em levar o ensino fundamental e médio (antes era primeiro e segundo graus) às mais distantes comunidades do interior do estado do Pará, cujo objetivo era formar o estudante na sua própria comunidade, no seu próprio município de origem, sem que fosse preciso se deslocar para outros municípios ou para a capital, a fim de concluir os estudos do segundo grau, uma vez que, em muitas cidades do interior, não havia oferta de vagas pro segundo grau, ou seja, não havia segundo grau. Com isso, muitos estudantes deixavam de estudar ou abandonavam os estudos por falta de opção, ou, quando a família tinha condições financeiras, mandava o filho ou filha estudar em Belém ou em outro município que atendesse essa demanda. De qualquer maneira, era um transtorno para quem tinha que deixar casa e família, e ter que morar com parentes, com horários pra chegar à casa, ajudar na alimentação, gastos com transporte, num ambiente totalmente alheio ao seu contexto social. E saibam que muitos desistiam dos estudos por falta de adaptação e, principalmente, pelo fato de a família não ter condições financeiras de manter o filho ou a filha estudando longe de casa.


O sistema Modular foi, sem sombra de dúvida, a melhor política na área educacional que as famílias do interior do estado tiveram ao longo dessas décadas, uma vez que dá oportunidade a essa gente interiorana de sonhar com um futuro mais promissor, de ter a profissão que quiser, de ser professor, mestre e até doutor. As opções a partir do SOME são infinitas. Realmente, a educação muda, transforma a vida em sociedade.


Ao me deparar com fotos, imagens de colegas professores do SOME, imagens que denotam gestos de sorrisos, alegrias, preocupação, indignação, fico me perguntando: Onde eles estão? O que fazem hoje? Por onde andam? Por que não escrevem a história de suas próprias experiências? De certo que há muito que se contar. Coisas que ficaram guardadas no cofre da memória, que dariam coletâneas e coletâneas de livros impressos.


Muitos se lembram das reivindicações dos professores do SOME que foram pras ruas de Belém protestar em pleno governo militar. E ainda tem gente dizendo que não houve ditadura no Brasil. Será que não tem nenhum professor aqui lendo este artigo, que nunca correu da polícia quando reivindicava meia passagem nos ônibus urbanos? Será que tem alguém aqui que nunca levou uma cassetada com cassetete de borracha ou viu um colega levar? Será que ninguém aqui não foi parar na cadeia e ver o sol nascer quadrado, simplesmente porque protestava por um ensino de qualidade? Lembro de uma vez em que, durante um protesto por causa do aumento da passagem do ônibus, meu irmão, que era estudante de história na Universidade Federal do Pará, junto com outros estudantes, foi perseguido nas ruas de São Brás por policiais militares armados de cassetete. Ele e mais dois colegas entraram numa vila, viram a janela da sala de uma casa aberta e pularam pra dentro dela, caindo em cima das pessoas que estavam sentadas no sofá assistindo televisão. Foi hilário. Os donos da casa, logo no início e, diante da surpresa e ousadia, se assustaram. Mas logo os três estudantes se identificaram e explicaram a situação para aquela família, que resolveu ajuda-los, escondendo-os na casa. Os policiais militares passaram pela rua, pararam em frente à casa e perguntaram se não tinham visto três jovens passarem correndo por ali, três marginais. O dono da casa disse que não viu nada, e, então, os policiais foram embora.


Quando vejo a imagem da Ester, que foi coordenadora do SOME, em plena manifestação nas ruas de Belém, lutando pela educação paraense, lutando também pelo Sistema Modular, juntamente com outros tantos colegas de profissão, como o Cláudio Paixão, Iris, Ribamar, Nonato Bandeira, Yorké, Cláudia, Marina, Sérgio Bandeira, Jorge Coutinho, Waldir Araújo, Medeiros, Edgar, Erecê, Reginaldo de matemática, Rosivaldo também de matemática, e centenas de outros colegas, uma centelha de esperança me aquece o coração, pois sei que muita gente ainda se preocupa com os rumos da educação, que muitos têm esse ofício como uma segunda família ou parte da família.


São bravos e corajosos os professores do Sistema Modular, porque foi com ousadia que foram desbravando os rincões mais distantes do nosso estado. Com quantos problemas não se depararam em suas andanças? E as negociações com a prefeitura local que incluíam casa e alimentação? Quantas vezes não tiveram que se digladiar com gestores municipais por causa do subsídio, ou por denunciarem problemas na escola, no transporte de alunos, na energia do motor que parou de funcionar. De tudo se achava um pouco, até problemas com ratos, baratas e fantasmas na casa dos professores. Muitas escolas também apresentavam sérios problemas de infraestrutura, falta de pintura, falta de espaço para atividades extraclasse e, muitas vezes, as salas de aula eram improvisadas com algumas carteiras e um quadro de giz. Em meio a todos esses transtornos, ainda era preciso fortalecer o ânimo de alguns alunos e diminuir a evasão escolar. E também fortalecer o ânimo do próprio professor.


Quantos aniversários comemorados longe da família, dos amigos próximos; quantos casamentos de anos desfeitos, quantos namoros terminados, quantos amigos deixaram o município sem se falarem. Tudo na vida tem, no mínimo, dois paralelos, duas coisas contrárias que não se unem, como duas estradas que apontam em sentidos diferentes. Do mesmo modo foi e ainda é o SOME: Junta e afasta famílias, amigos, cônjuges, namorados, por causa do compromisso com a educação. Que paradoxo. A educação junta e afasta, ensina uma coisa e faz desaprender outra. Felicidade pra uns, tristeza pra outros. Sim, os professores mergulharam no desconhecido à procura da pedra rara, da flor azul que brilha nas noites de luar. Esse brilho, não raras vezes, era encontrado nos olhos do professor que, mesmo diante de tamanha saudade da família, sabia que estava fazendo algo grandioso que poderia mudar a concepção de mundo, da sociedade globalizada: ele estava ensinando o seu aluno a pensar por si só, a ter liberdade de imaginação, a olhar o outro como a si mesmo.


É... Quando eu olho para fotos antigas, tiradas com a velha Kodak ou com a Polaroide – fotos de um tempo em que se mandava revelar os negativos em estúdio – vejo uma parte de minha vida e de meus amigos pausada no tempo, quase em preto e branco, com momentos históricos de atividades de sala de aula ou em algum momento de descontração entre professores e alunos. O que ficou, ficou gravado no tempo. Um tempo de aprendizagem para toda uma vida. Aprendizagem do professor, aprendizagem do aluno que, desta vez, pode-se ler e reler em livros, cujos autores vivenciaram cada trecho escrito.


*O autor é ex professor do Sistema de Organização Modular de Ensino - SOME e Poeta.

 

2 comentários:

  1. Grandes lembranças e eternas saudades de bons tempos, que poderíamos brincar na rua, mesmo com falta de energia como: pira se esconde, peteca, assassino, pião etc.. tudo com liberdade é sem maldade.As escolas todas respeitadas e alunos uniformizados, lembranças boas.

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  2. Que viagem deliciosa vc me fez fazer.Pensei que estavas falando de mim, de minhas vivencias, experiências.da minha vida.Muitos nem lembram de mim ,mas eu estava lá. Aprendi muito e doei o meu melhor. Grata colega por nos representar tão bem na sua fala.Abrs grande

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