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sábado, 11 de março de 2023

VILA NOVA: A PRIMEIRA EXPERIÊNCIA DE EMOS E ABIR ARIEVILO

 

   

                  

                 * Carlos Prestes

                 * Ribamar Oliveira

 

        O período de janeiro, fevereiro e março, e parte de abril são os meses mais complicados e chuvosos para os professores que atuam no Sistema de Organização Modular de Ensino – SOME, política pública que funciona nos interiores do Estado do Pará atendendo os alunos e alunas do ensino médio onde não tem o ensino regular. É importante dizer que esta política pública, no próximo dia 15 de abri do ano corrente, completará 43 anos de atividades pedagógicas, contribuindo na formação intelectual da juventude, sendo que, atualmente, apenas o município de Abaetetuba possui o ensino fundamental/médio, e nas demais localidades – quase quinhentas – funciona apenas o ensino médio. Abaetetuba também é um dos municípios que tem mais professores. 

 

        Segundo os profissionais de educação que atuam no Sistema Modular, e que defendem esta forma de política pública de educação como algo fundamental para o desenvolvimento social destas comunidades, bem como para o crescimento profissional e melhoria de vida dos atores envolvidos, duas localidades, recentemente, deixaram de ser atendidas pelas equipes de professores do SOME, sendo elas, Ajuaí, em Abaetetuba, e a localidade de Forquilha, no município de Tomé Açu. 

 

       Os professores Abir e Emos foram lotados no SOME, na década de 1990 e, como bem sabemos, os quatro primeiros meses do ano são períodos chuvosos, com enxurradas, quase que diariamente, varrendo as ruas, as estradas, entrando pelos esgotos entupidos, causando alagamentos e dificuldades de acesso em várias partes de regiões do Pará, prejudicando a comunicação terrestre e inviabilizando, muitas vezes, o direito de ir e vir. Tudo isso, como consequência das fortes chuvas. 

 

       E foi justamente durante um dos módulos, quando os dois foram enviados para fazer reposição de aula na localidade de Vila Nova, no município de Tomé Açu, que puderam ver com os próprios olhos e sentir na própria pele as dificuldades que essa gente do interior é obrigada a passar e suportar, porque não existe outro caminho, não há para onde ir, nem como recomeçar tudo do zero. 

 

       Os dois professores, novatos que eram, logo na primeira experiência sentiram na pele a difícil realidade de uma das regiões que mais sofriam durante o período das chuvas. Os olhares fotografavam estradas e ramais esburacados, e, com isso, algumas áreas se tornavam perigosas por falta de segurança, pois, como as estradas esburacadas não permitiam que se aumentasse a velocidade do carro ou do ônibus, tendo que frear a todo tempo, desviando, em ziguezague, de buracos, para não quebrar o carro, o ônibus ou o caminhão, os assaltos acabavam acontecendo com frequência, uma vez que o momento era propício. Toda essa demora, esses problemas na estrada, faziam com que uma viagem, que deveria ser de três horas e meia, aprazível, às vezes, durava até sete horas durante este período de chuva, e se tornavam cansativas. 

 

       Por conta de todos esses transtornos, os professores evitavam vir para casa nos finais de semana. Uma das razões era a distância, que contava um percurso de, aproximadamente, 280 quilômetros; outra razão, eram as péssimas condições das estradas. 

 

       Os professores estavam viajando em ônibus da linha Boa Esperança, mesmo assim não se sentiam seguros, pois a região abrigava muitos imigrantes vindos de outros Estados da União para tentar ganhar a vida ou dinheiro, já que, em sua terra natal, não tiveram muitas oportunidades. O que se sabe mesmo, é que muita gente foi embalada pelo sonho de vir para o Pará e fazer fortuna, ou, pelo menos, prosperar financeiramente, quer na garimpagem, quer na pecuária ou na agricultura, já que as terras paraenses dispunham de solo propício para a plantação, pelo menos em algumas áreas. E, assim, com esse sonho na mente, famílias inteiras mudaram-se de mala e cuia para o interior do Pará, compraram terras, pequenas propriedades, e foram de sol a sol, de enxada em enxada, de chuva em chuva, construindo seus sonhos de tijolo em tijolo. Como enfatiza a teoria da seleção natural de Charles Darwin, alguns conseguiram crescer financeiramente e, por consequência, socialmente, mas outros passaram a trabalhar nos estabelecimentos comerciais do município, outros voltaram para suas regiões de origem, e outros até morreram devido as doenças. 

 

       Na saudosa década de 90, os professores sofreram nas estradas em tempos de chuva. Viajar de ônibus ou mesmo de carro particular durante a estação de inverno era, sem dúvida, naquele momento, o pior meio de transporte para se chegar a qualquer município. As estradas não eram asfaltadas, apenas aterradas a pau-a-pique, como chamavam em alguns municípios. Os gestores municipais não tinham interesse na trafegabilidade das estradas e ramais, já que as despesas saiam do setor financeiro das prefeituras e, assim, elas permaneciam ano após ano. 

 

       Retornemos aos dois professores novatos que foram à Vila Nova formando a primeira equipe de trabalho, e que continuariam trabalhando juntos por muito tempo ainda. Os dois eram considerados trecheiros, ou seja, eram acostumados aos trechos e às adversidades da vida, pois já haviam passado por muitos perrengues quando em viagem. Tanto um como o outro entraram para o quadro de professores do SOME como prestadores de serviço temporário, assinando um contrato com a Secretaria Estadual de Educação – SEDUC/PA, órgão responsável diretamente pelo gerenciamento do projeto na época, com a coordenação do SOME funcionando dentro da instituição, de onde se fiscalizava, orientava e gerenciava todos os professores e municípios onde o SOME atuava. 

 

       Ambos, Abir Arievilo e Emos, residiam em Belém do Pará, capital do Estado, a cidadezinha das mangueiras, das castanheiras, da chuva das três horas da tarde, a moreninha, como muitos diziam. E residiam às proximidades da SEDUC, cuja sede fica, ainda hoje, na Avenida Augusto Montenegro. Naquele tempo, quando alguém entrava para ser professor do SOME que, na época, ainda era um projeto, tinha que passar por um treinamento oferecido pela coordenação geral. Foi lá, nessa dita semana de treinamento, participando de atividades pedagógicas, que os dois professores se conheceram, se entrosaram e logo ficaram amigos, como se conhecessem há muito tempo. 

 

       Durante esta semana de formação, ficavam imaginando como seria trabalhar juntos, desenvolvendo atividades pedagógicas que poderiam ir além da sala de aula. As experiências que obtiveram em alguns interiores, prestando serviços em algumas prefeituras, não ficaram inertes no passado, mas carregavam essa bagagem também para suas práticas educativas, pois sabiam que seriam úteis. 

 

       Finalmente, o período de formação chegou ao fim e foi marcado o dia de viagem. A expectativa era grande, por parte dos dois, quando se dirigiram à coordenação para receberem as cópias da carta de apresentação, que seriam entregues à coordenação do SOME na localidade e à direção da escola aonde iriam trabalhar, quando chegassem ao município de destino. Desde o convênio estabelecido entre Prefeitura e Estado, bem como os horários das aulas, estavam bem organizados e estruturados, conforme suas cargas horárias e distribuição delas nos dias letivos, de segunda à sexta-feira, para cumprimento na localidade. Enfim, tudo feito conforme mandava o figurino e a formalidade. 

 

       No dia da viagem, em Belém fazia, como sempre, aquele calorzão de fazer escorrer o suor pelo corpo, deixando partes da camisa molhada, principalmente nas regiões das axilas. Nesse dia, os dois combinaram de irem juntos, no mesmo táxi, para o Terminal Rodoviário, pois eles moravam próximos um do outro. E, por outro lado, traria economia para o bolso, uma vez que dividiriam a corrida. Alguns minutos se passaram de casa até o Terminal de São Brás. Os dois iam animados, ansiosos para chegarem ao destino final, pois tinham muitas expectativas. 

 

       No Terminal, havia um movimento rotineiro de pessoas que iam e vinham; vendedores, na área externa da entrada, gritavam pra chamar a atenção das pessoas, oferecendo suas mercadorias; táxis e carros particulares estacionavam, a todo momento, à frente do Terminal, onde pessoas desciam dos carros com bagagens e caixas com mercadorias. Juntando-se a isso, o barulho infernal das buzinas e o ronco dos motores de carros que se misturavam com o dos ônibus da linha. Era um corre-corre, gente falando para todo lado.  

 

       Depois de colocarem as bagagens maiores no porta-malas do ônibus, entraram, finalmente, sentaram, cada um na sua poltrona, e deram um profundo assovio de alívio. Finalmente, estavam descansando e em silêncio, pois as janelas e as portas do ônibus estavam fechadas. Alguns minutos se passaram, até que o motorista deu a partida no motor, saindo do Terminal lentamente, passando pela Avenida Almirante Barroso, alcançando, em Ananindeua, a BR 316, e, daí em diante, o motorista acelerou, cuspindo aquela conhecida fumaça preta, indo em direção à Vila Nova, no município de Tomé Açu. 

 

           Uma chuva torrencial já se formava. 

 

       Eles sabiam o que vinha pela frente: uma verdadeira maratona de chão para percorrer até chegar ao destino. Era ainda cedo quando saíram de Belém, pela manhã. Viajaram o dia inteiro, olhando as paisagens que passavam velozes por eles. Eram paisagens distorcidas, pois os espelhos das janelas estavam turvos com as águas da chuva. Quando cansavam, tiravam um cochilo, porque não conseguiam dormir direito com os sacolejos do ônibus. No final da tarde, quando o sol já se preparava pro seu cochilo diário e uma pontinha de sombra já começava a cobrir as clareiras, a copa das árvores, o horizonte, eles finalmente chegaram a Vila Nova. 

 

       O professor Emos conversava pouco, mas dormia mais que Abir. Porém, Abir, andava sempre com seu rádio portátil e o fone de ouvido para tentar se distrair durante o percurso, ouvindo o programa A Voz do Brasil, da Rádio Nacional, já que considerava este programa o melhor meio de veiculação de informações que o país possuía, uma vez que alcançava todo o território nacional. 

 

       Era a hora e a vez do rádio. Todo mundo tinha um em casa: na cozinha, no quarto ou na sala, e era comum ficar escutando o radinho na porta da casa, principalmente em dia de jogo do Remo e Payssandu. Estava na moda. 

 

       Como já foi dito, as chuvas eram torrenciais e acompanharam os professores durante toda a caminhada. Essas chuvas causaram alguns deslizamentos de terras nas encostas das estradas e ramais. Isso gerava uma sensação de pavor, não somente nos professores Abir e Emos, mas nos passageiros de modo geral. Gritos abafados eram ouvidos por todo o interior do ônibus. Em certo momento o motorista deu uma freada, olhou pra trás e disse: 

 

       - Calma, pessoal! Eu estou acostumado a andar por aqui. Faço isso toda semana. Vou e volto. Não se preocupem que o ônibus não vai atolar nem cair no barranco. Eu conheço o trecho. 

 

       Como se pode ver, os dois professores chegaram seguros. Desceram do ônibus com as bagagens nas mãos. Olharam o entorno de onde estavam, e procuraram se informar onde ficava a casa dos professores. 

 

       O dia estava terminando, a noite começava, e eles só queriam chegar à casa, tomar um banho e se jogar na cama até o outro dia. 

 

       São assim as histórias desses heróis do SOME. Professor Abir Arievilo e professor Emos, uma equipe parceira de modulindos e de andarilhos, formada por dois educadores recém-contratados. E qual era a missão? Expandir o conhecimento do ensino-aprendizagem, atravessando pontes, rios e igarapés. Sim, ensino é ação; aprender é ação, e a educação, essa senhora educação, a gente encontra nos lugares mais improváveis, pois é ali que ela está, porque o objetivo é mudar a pessoa, transformá-la em alguém útil à sociedade, à família e a si mesmo. 

 

        Experiências ímpares que só quem vivência sabe o que representa. Os gestores? Ah, os gestores não conhecem um quinto da terra que pisam; não conhecem a diversidade cultural que as várias regiões apresentam e preservam. Mais o professor do SOME conhece cada palmo dessas vicinais, dessas vilas, comunidades, desses rios, igarapés, dessas estradas esburacadas no inverno e poeirentas no verão. Os gestores do Estado não conhecem a sua gente; o professor, sim, conhece a sua gente e o seu chão.

 

       E, mais uma vez, o ônibus da Boa Esperança fechou as suas portas, ligou o seu motor e partiu dali, jogando fumaça preta no ar, sem olhar para traz. 

 

*Os autores são escritores e ex-professores do Sistema de Organização Modular de Ensino - SOME.


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