Quem nunca ouviu falar do SOME, dos professores do Sistema Modular que saíam, em grande parte de Belém e outros municípios vizinhos, para irem a outros municípios do interior do Estado do Pará? Sabem pra quê? Pra dar aula. Eram professores, trabalhadores que tinham como profissão ensinar o aluno e a aluna a pensarem por si mesmos. Consigo até vê-los batendo com a palma da mão no peito a exclamar em alta voz:
- “Sou Professor! Professor do
Sistema Modular de Ensino!”
Você já teve uma experiência como
essa? Já saiu do conforto da sua casa e viajou quilômetros e mais quilômetros,
indo a lugares onde nunca havia pisado antes, conhecendo gente que nunca tinha
visto, confrontando com culturas que não conhecia? Pois é. Esses professores
passaram por todas essas experiências. Incríveis experiências! Ah, sim! E
muitos ainda passam, porque o SOME continua em plena atividade, desde 1980.
Isso mesmo. Já se vão aí quarenta e dois anos de existência de uma política
pública ímpar no Brasil, que eu e meu caro amigo Abir Arievilo, tivemos a honra
de fazer parte dela.
Por falar em sistema modular, em
professores e viagens, sabem quem é Abir Arievilo? Esse nome estranho, ou, no
mínimo, um tanto diferente, não lhes causa nenhuma curiosidade? Ele já apareceu
em outras histórias que eu contei aqui, rabiscando essas páginas. Sim, ele foi
professor do SOME e encontra-se, atualmente, aposentado da SEDUC. É uma
aposentadoria apenas formal, institucional, que o tirou dos quadros efetivos da
Secretaria de Educação para dar lugar a novos professores. Como eu disse, é uma
aposentadoria apenas institucional, porque o professor Abir Arievilo continua
em plena atividade, não em sala de aula, mas através de vários meios pelos
quais desenvolve atividades pedagógicas, quer seja escrevendo, participando de
atos pela democracia, eleições, palestras, sempre atento a questões que
envolvam a sociedade, a educação, a cultura, a dignidade humana, temas estes
tão relevantes que movem sua vida e sua biografia.
Há tantas histórias escondidas na
memória de Abir Arievilo. Tantos fatos, imagens, acontecimentos, linguagens,
tudo tão guardadinho ali, em algum lugar da memória, querendo empurrar a porta
de saída pra ver o sol novamente, pra mostrar ao tempo presente um passado
fabuloso feito por gente, uma mistura de gente que ousou sonhar em ser amiga do
rei, com uma educação sem fronteiras, com a munição do livro subjugando a
munição da bala. É uma pena que muitas dessas histórias irão se perder na
memória de muitos outros professores que se aposentaram do ofício de ensinar a
pensar por si mesmo. Os motivos são diversos: muitos pediram ou foram obrigados
a pedir transferência para o ensino regular e, com isso, acabaram por acumular
novas recordações, novos amigos, novos alunos com realidades diferentes das dos
alunos do interior, expulsando da memória da mente, verdadeiros tratados reais
de história, de antropologia, de fenômenos culturais vivenciados em suas
viagens; outro motivo foi a inabilidade com o trato da escrita, ou seja, muitos
professores até lembram bem de fatos vividos e presenciados quando eram
viajantes do modular, e até conseguem contar, falar sobre o assunto com
entusiasmo, mas não conseguem escrever uma linha sequer, porque falta-lhes o
domínio das letras; outros até fazem as suas anotações, os seus rabiscos e
estão à espera de uma oportunidade para publica-los, seja em coletânea ou de
forma autoral; há também os que simplesmente perderam a esperança e se cansaram
de esperar por uma oportunidade de ter seus escritos publicados, e deixaram que as traças e o mofo dessem fim
a todas as suas memórias; por fim, infelizmente, há também aqueles que
esperaram uma vida toda pra verem seus nomes estampados na capa de um livro,
seja de poesia, conto, crônica, romance, artigo científico, mas a doença e a
morte os levaram antes que eles tivesses tido essa experiência. Que alegria
seria pra eles, não? Experimentar isso em vida, poder tocar no livro, abrir
suas páginas, folheá-las, admirar a arte da capa, lê-lo de cabo a rabo e nunca
cansar de ler. Ah! A vida estaria completa, perfeita.
Então, para que não corramos esse
risco de perder nossa memória, vamos registrar, aqui, mais uma história de vida
do professor Abir Arievilo. Bem, quando ele viajava, deixava sua família até
por dois módulos. Quem não conhece o sistema modular, com certeza não sabe o
que isso significa. Meu caro leitor, caro entusiasta das histórias reais de
nossa terra, quando digo que o professor, às vezes, ficava até dois módulos
distantes da família, quero dizer que ele ficava quatro meses longe de casa,
longe da esposa, do esposo, dos filhos, da mãe, do pai, do irmão, da irmã, dos
amigos, dos parentes. E quatro meses é muito tempo. Quero lembrar que o professor
Abir e sua família moravam em Belém. Essas viagens estavam programadas para
várias regiões do estado do Pará, como baixo Amazonas, sudoeste do Pará, sul do
Pará, nordeste do Pará, Marajó; algumas das regiões eram distantes, outras nem
tanto, e outras mais perto da capital. Muitas vezes, o professor era mandado
para um município distante e, se o próximo município de seu polo fosse perto de
onde estava trabalhando, ele já não retornaria para a capital, porque o tempo
de recesso era curto em Belém.
Isso aconteceu até antes de 2003,
quando a SEDUC desestruturou o Sistema de Organização Modular de Ensino nos
interiores do Estado do Pará, proporcionando a descentralização na coordenação
desta política pública.
Pois então. Era o mês de maio e o
ano de 1989, e Abir Arievilo, em mais uma de suas viagens, pegou uma embarcação
de dois andares, de Santarém para Oriximiná, porém, como marinheiro de primeira
viagem, chega ao barco com rede, porém, sem as cordas para atar nas escápulas.
Devido ao tempo já passado – trinta e dois anos – seria quase certo que o nosso
personagem não se lembrasse do nome da embarcação, e não lembrou mesmo. Mas
deixa estar que o gerente da embarcação percebeu a inexperiência de Abir em
amarrar sua rede. Então, diz ao marinheiro de primeira viagem:
- Senhor, é melhor comprar as
cordas para os dois punhos. Desse jeito, não conseguirá armar sua rede. Tem
comércio aqui perto. - e apontou para o dito comércio logo à frente.
Enquanto isso, os passageiros
começaram a chegar à embarcação. Abir Arievilo foi a uma loja, logo ali perto,
atrás das benditas cordas. O movimento no porto era intenso naquele horário, em
virtude da maré facilitar a viagem. Gente carregando sacola, mala, peões com
sacos de farinha nas costas, mulheres com crianças se acotovelando pra entrar
no barco. O comércio também tinha lá o seu movimento, gente nas ruas comprando,
trabalhando ou apenas passeando numa tarde de sol. Ali, se vendia de tudo,
principalmente utensílios de cozinha, eletrodomésticos, motores de pequeno,
médio e grande porte para embarcações, botijão de gás, fogão, geladeira,
panelas, roupas, produtos hortifrutigranjeiros; ali tinha loja que vendia pra
todos os gostos, farmácias, supermercados, feira e até um posto da Telepará com
os seus orelhões; foi ali, no meio daquele burburinho todo, que o professor
encontrou uma loja que vendia cordas para redes.
Retornou à embarcação rapidamente
com dois pedaços de cordas. Mesmo assim, teve dificuldade para amarrá-las nos
punhos da rede. Porém, um senhor aparentando ser sexagenário, percebendo o
aperreio dele, se aproximou e perguntou se poderia ajudar. É claro que Abir
aceitou a providencial ajuda; e logo ficou sabendo que a rede daquele senhor
estava atada ao lado da dele.
Logo, Abir inicia um diálogo com
o senhor que o ajudou e, talvez, querendo retribuir a generosidade daquele
senhor, que, para não ficar repetitivo, vou chamá-lo pelo nome fictício de
Vargas, estendeu a conversa até tarde da noite.
Entre as conversas que o senhor
Vargas puxou, uma delas tinha uma importância maior: era sobre a história que
aprendera lendo os livros didáticos dos netos. Ele dizia:
- Meu filho, meus netos chegam
das aulas, vão largando tudo por qualquer lugar da casa, mas eu aproveito a
oportunidade pra mexer nos livros, ler as histórias, os textos. Já que não
gostam de ler, eu faço isso com todo o carinho. Não é peso nenhum pra mim.
Gosto de mexer nos livros, de aprender, afinal, eu não tive a oportunidade que
eles tão tendo.
Entre os destaques dos assuntos
que puxou, o que tratava sobre Getúlio Vargas era o que mais gostava de
abordar, pois, para ele, Getúlio Vargas foi o melhor Presidente da República do
Brasil, já que era considerado o pai dos pobres. O legado que Getúlio tinha
deixado para a história era um registro vivo para aquele senhor. Ele se
apresentou para o professor e vice-versa, mas já vão trinta e três anos que
aquela conversa aconteceu no interior daquela embarcação que saia do porto de
Santarém e, consequentemente, Abir não tem lembrança do nome daquele senhor.
Por isso, pedimos perdão à história e continuaremos a chamá-lo de Vargas.
Abir percebeu que, quando Vargas
falava de Getúlio, tinha sempre uma expressão de alegria e emoção no rosto.
Abir olhava atentamente para ele e ficava pensando consigo mesmo que, aquele
velho homem, mesmo com toda a sua simplicidade de homem rude do interior,
parecia saber mais de história do que ele, que era professor da disciplina. Não
era o conteúdo dito pelo velho Vargas que o impressionara, mas a emoção na voz,
no rosto, quando partilhava um pedaço do que aprendera. Dava a impressão de que
tinha vivido tudo aquilo. Abir deve ter imaginado que essa emoção impactante
estaria faltando em muitos educadores que, por sua vez, priorizavam o
conhecimento seco, formal, endurecido pelos problemas pessoais, profissionais,
financeiros, e uma enxurrada de provas sem sentido era jogada nas carteiras dos
alunos, exigindo que não tirassem menos de sete. E, se isso acontecesse, já era
uma justificativa para a reprovação do “mal” aluno.
Tanto tempo que passou. Tantas
décadas e nada mudou no ensino? Os professores continuam passando provas
objetivas e decorebas com tabelinha de certo ou errado? Os alunos continuam com
a mente cauterizada por uma pedagogia que lhes impede de pensar, de voar com as
asas da sua própria imaginação? Continuam impedidos de decidirem por si mesmos
qual o próximo passo que darão nas suas vidas? Até eu - esse personagem
onisciente -, também quero poder voar nas minhas observações acerca desta
aventura de Abir Arievilo.
Pois bem, voltemos à nossa
história. Quando a embarcação aportou em Oriximiná, a amizade entre os dois
novos amigos se fortaleceu ainda mais. Os dois iriam pegar outra embarcação de
pequeno porte do porto de Oriximiná para Terra Santa. Aquele velho senhor iria
ficar no meio do caminho. Eram quatro horas da manhã quando aportaram em
Oriximiná. Ficaram ali a manhã todinha e parte da tarde, até às dezesseis
horas, mais precisamente, à espera de outra embarcação menor, a dita que os
levaria até Terra Santa.
Finalmente, o barco desatracou do
porto e saiu rio acima, fazendo seu barulho característico de motor queimando
combustível. Era uma embarcação pequena, tipo uma rabeta coberta, que tinha
lugares para, mais ou menos, doze pessoas. O porto e a cidade de Oriximiná iam
ficando para traz à medida que a embarcação se distanciava da beira e
mergulhava nas águas misteriosas daquele rio. A cada mergulho do barco naquelas
águas, Abir parecia se render mais às orações e aos santos, pedindo para que a
viagem terminasse o mais rápido possível, ainda que apreciasse bastante a
paisagem. E o senhor Vargas, aquele velho senhor, calejado de tantas idas e
vindas rotineiras pelas águas daquele rio, entre Santarém e sua comunidade, se
divertia com o comportamento do professor.
Abir aproveitou cada momento das
conversas que teve com o velho senhor, ali, deitados um ao lado do outro, cada
um na sua rede que balançava ao ritmo da maresia. O professor Abir o achava uma
figura ímpar, muito inteligente e interessado pelo conhecimento, por fatos
históricos, um ser original. Infelizmente, repetindo o ciclo da história de
muitas outras famílias que moram nesse pedação de Pará, não teve oportunidade
de estudar. Segundo Vargas, ele era apenas um pequeno agricultor que vivia de
plantar, de cuidar da terra, de lavrá-la e de se sustentar dela. Plantava
verduras e frutas. Tudo vinha dela, tudo o que conquistou foi através dela: a
casa, o sustento da família, os bens, móveis, a educação dos filhos. Também era
pescador. Pescava para fazer o famoso piracui, peixe desfiado pelos familiares
que ajudava na renda da família. E ele dizia a Abir, enquanto coçava os dedos
do pé esquerdo:
- Olhe, seu moço! Se o senhor me
perguntasse agora se eu tô arrependido de ter estudado pouco, eu lhe digo que
tô não. Pois eu faria tudo de novo. Pra ver meus filhos e netos estudando, eu
faria sim, tudo de novo. Ora se faria!
- No meu tempo, seu moço, as
oportunidades eram poucas. Escola não tinha na comunidade, nem quem ensinasse.
Nem emprego tinha pra quem vivia afastado da cidade. Se quisesse sobreviver,
tinha que pegar na enxada, no terçado, no ancinho e ir pra roça de sol a sol.
Agora, veja só! Já tem até professor indo atrás do aluno, indo ensinar lá na
terra dele, perto da família, como o senhor que vem de Belém pra ensinar em
Terra Santa. O senhor tá um bocado longe de casa!
A conversa durou ainda por algum
tempo, até que aquele velho senhor chegou à sua parada de destino. O barco
atracou num pequeno trapiche de madeira. O senhor Vargas se despediu de Abir
com um forte aperto de mão, que o professor pensou que tivesse fraturado os
dedos; então, desceu do barco e subiu a velha escada do trapiche. Nos fundos,
algumas casas de palafitas, alguns poucos comércios e uma ponte de tábuas que
dava acesso às casas que margeavam o rio. Era uma comunidade ribeirinha pacata,
de pessoas pacatas, ali, vigiando o rio Amazonas.
Quando a embarcação deixou o
pequeno trapiche, ainda era possível Abir ver aquele velho senhor acenando lá
da terra seca, dando adeus.
- Até mais vê, professor!
- Até mais vê, seu Vargas!
Essa imagem ficou diante dos olhos
de Abir até sumir de vista. Naquele momento, para ele, havia ficado uma
sensação de que a embarcação estava vazia, mesmo com tantos outros passageiros
a bordo. O problema é que eles não tinham o mesmo entusiasmo e alegria daquele
senhor que tinha ficado para traz, naquela comunidade tão desconhecida para o
professor Abir, às margens de tão imenso rio.
Assim, Abir seguiu sua viagem,
uma longa viagem até seu destino: Terra Santa. Lá, iria cumprir o calendário de
56 dias letivos daquele período, em seu primeiro município de trabalho pelo
sistema médio modular. Era a sua estreia e seu batismo de professor itinerante
do SOME. Para ele, tudo era novidade e alegria, mesmo com dificuldades, por
vezes encontradas.
No mês de julho de 1989, Abir e
outros professores, retornaram de Terra Santa para Santarém no barco de mesmo
nome. Lá chegando, descobriram que a companhia de aviação Varig, havia
desmarcado suas passagens devido à demanda de viagens. Não tendo outra
alternativa, voltaram de carona no mesmo barco “Terra Santa” que estava indo
para Belém. Sete dias, sete dias viajando por além-mar do rio amazonas, vendo
paisagens que, talvez, nunca mais poderão ser vistas, pássaros sobrevoando o
rio, botos tucuxis, botos cor de rosa, aquela brisa no rosto, aquele som de águas
batendo no casco da embarcação. Ah, sim! Com certeza, Abir Arievilo ficava
imaginando quantas histórias ele tinha pra contar aos seus familiares e amigos
sobre tudo que viu, ouviu e viveu. Quem poderia conhecer mais a fundo esse
nosso torrão do que os professores do modular?
Abir Arievilo chegou a Belém no
dia vinte de julho de 1989. Chegou cheio de bagagens. Bagagens na memória e no
coração que nada poderia apagar. Tanto é verdade que estamos contando um pouco
de suas memórias. E você está lendo, e se deliciando com esses fatos simples da
vida cotidiana.
Ah, não se preocupem! Acham que a
história chegou ao fim? Não, não! As histórias do SOME nunca chegam ao fim,
pois Abir Arievilo ficará apenas alguns dias em Belém, no máximo algumas
semanas. E logo, logo estará voando de novo para um novo município, uma nova
comunidade, em alguma parte deste imenso território paraense.
*O autor é poeta, escritor e
ex-professor do SOME, Curitiba, 08 de dezembro de 2022
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