Quão frágil e delicada é a vida. Na
verdade, não passa de um sopro de vento que vem, passa por nós, tão rapidamente,
que quase nem percebemos. E, aqui, neste mundo, onde mais sobrevivemos do que
vivemos, a vida pode ser representada por várias simbologias. A flor, por
exemplo, representa a vida muito bem. Ela é frágil, bela na sua curta
juventude, mas, dias depois, começa o processo de envelhecimento, e ela murcha
rapidamente e, com isso, vai perdendo a cor, a resistência, o vigor, até secar
e definhar. E quem liga pra essa flor depois que ela definha? Quem se importa?
Há outras tantas à disposição.
Essa lógica cruel faz parte do
pensamento lógico dos povos civilizados, ou, pelo menos, que se dizem
civilizados. Mas não somente dos povos civilizados, e, sim, do próprio ser
humano. Está em seu DNA desde a sua primeira respiração, e vai crescendo dentro
dele à medida que se desenvolve. A vida é, sim, tão efémera, tão inconstante,
que me pesa reconhecer essa verdade. Uma verdade dita, não apenas, por
cientistas sócias, ou por religiosos nos púlpitos das igrejas, mas, também,
escritas e imortalizadas pelas penas de nossos poetas. Que o diga Gregório de
Matos em seu poema Inconstância das coisa
do mundo:
“Nasce o
Sol e não dura mais que um dia,
Depois da
luz se segue a noite escura,
Em
tristes sombras morre a formosura,
Em
contínuas tristezas a alegria.
Porém, se
acaba o sol, por que nascia?
Se é tão
formosa a luz, por que não dura?
Como a
beleza assim se transfigura?
Como o
gosto da pena assim se fia?
Mas no
sol, e na luz falta a firmeza,
Na
formosura não se dê constância,
E na
alegria sinta-se a tristeza,
Começa o
mundo enfim pela ignorância,
E tem
qualquer dos bens por natureza.
A firmeza
somente na inconstância.”
São pertinentes as palavras do poeta,
as interrogações quando ele reflete sobre a brevidade da vida, utilizando-se de
figuras de linguagem para evidenciar esses contrastes. Pode-se observar uma
latente adversidade entre claro e escuro, sol (dia) e noite, entre luz e
escuridão, que se apartam um do outro, como que por maldição, como dois amantes
condenados ao desterro. Assim é quando tratamos de vida e morte. Nunca se
abraçam. Quando uma chega, a outra sai, e não há como remediar essa verdade.
Por isso, nos perguntamos: Por que o homem se acostumou com a morte? Por que
não se indigna diante de uma pessoa caída aos seus pés, ensanguentada, após ser
atropelada por um desses BRTs da vida. Não é a vida maior que a morte? Vemos a
presença da morte em todos os cantos da cidade. Não há um só lugar que escape
da sua presença. Mas o que causa indignação não é o fato da morte estar
presente na vida das pessoas. Não! Não é isso. O que causa indignação é a
indiferença do ser humano diante de um corpo sem vida no chão, diante de uma
tragédia anunciada. Nós simplesmente nos desviamos do corpo e seguimos em
frente, sem prestar muita atenção, apenas preocupados com o problema que nos
tirou de casa para a rua. Não sabemos mais chorar. Até pouco tempo, em regiões
como o nordeste, se pagava as carpideiras, mulheres contratadas para chorar e
rezar sobre o caixão de algum ente querido. Isso acontece, talvez, porque,
realmente, estamos nos tornando seres robotizados, cibernéticos, tão
preocupados com os nossos próprios problemas, com as nossas lutas pessoais, que
não percebemos que estamos nos tornando profundamente egocêntricos, orgulhos,
individualistas, avarentos. Não percebemos que o mundo capitalista está
distorcendo o nosso caráter, e estamos nos tornando mais irracionais do que os próprios
animais irracionais, porque o animal irracional mata para se alimentar, mas nós
matamos os nossos semelhantes pra quê? E por quê? O quê que o capitalismo está
fazendo com as sociedades, senão, provocar as desigualdades de oportunidades, a
competição desleal, o enriquecimento de uns poucos e o empobrecimento de
milhares, passando como um rolo compressor por cima de quem não aguentar ficar
de pé.
Estamos na era do individualismo, do
homem voltado para si mesmo, pro seu próprio umbigo, e nem sabe que, na
verdade, tudo o que está à nossa volta, nos atinge. A miséria gera a violência,
a violência gera toda sorte de crimes, e os crimes geram a morte. Todos perdem,
o rico, o pobre, o branco, o pardo, o preto, o amarelo, porque ninguém pode se
trancar pra sempre dentro de uma bolha ou de um carro blindado e viver. Neste
contexto, vem à mente a palavra “Liberdade”. Quem é livre? Verdadeiramente
livre? Somos todos encarcerados, não pelas circunstancias da vida, mas por
causa de nossas escolhas erradas, porque as circunstâncias da vida são
consequências de escolhas erradas. Não pensamos num bem coletivo; pensamos em
nós: eu e minha família, e esquecemos de que onde houver um resquício sequer de
miséria, haverá também um resquício de violência, que se avolumará, aos poucos,
até se tornar incontrolável.
De que adianta morar em uma bela casa,
num condomínio fechado, com segurança interna vinte e quatro horas, com câmeras
pra todo lado e controle de entrada e saída de pessoas, se, lá fora, a
violência te espera? Se uma hora vai ter que sair do casulo e se expor ao
perigo das ruas? A violência vem de todos os lados e de todas as formas: há
violência psicológica, violência física, violência patrimonial ou abuso
financeiro e econômico, adoção ilegal, aliciamento sexual infantil on line,
bullying, cyberbullying, discriminação, exposição de nudez sem consentimento,
negligência e abandono, pornografia infantil, tortura, trabalho infantil,
tráfico de crianças e adolescentes, violência institucional, violência sexual,
etc., etc., etc. Todas são profundamente nocivas à dignidade humana, porém, ao
meu ver, a violência institucional causa indignação ainda maior, uma vez que
esta representa qualquer tipo de violência observada no contexto das
instituições públicas ou privadas, com fins lucrativos, sem fins lucrativos,
praticadas com pessoas de ambos os sexos e de qualquer idade. Essas instituições,
nós conhecemos bem: são hospitais, escolas, postos de saúde, delegacias, poder
judiciário, poder legislativo, poder executivo, prefeituras, igrejas, etc. Por
que causam indignação maior? Porque são instituições que deveriam proteger o
cidadão ou a cidadã, mas, repetidamente, têm sido alvos de noticiários que
denunciam atitudes incompatíveis com as suas funções, envolvendo-se em
escândalos de corrupção, desvio de verbas, autoritarismo, selecionando quem
será atendido ou não, maus tratos, favorecimento ilícitos, chantagens,
pedofilia, ameaças e muito mais. Deveríamos nos escandalizar com isso? Ou as
constantes repetições de notícias ruins têm cauterizado nossas funções mais
sensíveis, que chegamos a comentar que “isso é normal?”
Que juízo fazer de um agente público
que deveria proteger mulheres vítimas de violência sexual, física, ou
psicológica, que se veem ameaçadas por cônjuges, dentro da própria casa? Esses
agentes, que deveriam garantir-lhes um atendimento humanitário, preventivo e
reparador, mas, ao contrário, por falta de preparo ou de caráter mesmo,
desdenham da vítima, muitas vezes, fazendo com que se sintam responsáveis pela
violência sofrida. A quem recorrer? Em quem acreditar? Quem garantirá que
aquela vítima não irá ser agredida quando retornar à sua casa? Quem deterá o
agressor? A polícia? O juiz? Um registro de ocorrência dado a ela depois do
depoimento? O político corrupto que tenta criar e aprovar leis no apagar das
luzes para não ser alcançado pela justiça?
Como entender a cabeça de alguém que
chega em casa pela manhã, a esposa e dois filhos pequenos estão na mesa da
cozinha tomando café com leite e pão, todos com sorrisos nos rostos,
agradecidos a Deus pelo desjejum e, quando o pai entra, os filhos correm pra
abraça-lo e dizem “bom dia, pai!”. O pai não demonstra reciprocidade,
simplesmente vai até o quarto do casal, apanha um revolver calibre trinta e
oito, volta para a cozinha e, sem dizer uma única palavra, aponta a arma para a
esposa e atira três vezes. A esposa cai, ali, no chão da cozinha,
ensanguentada, o sorriso desaparece do rosto; os dois filhos ficam sem entender
nada, olhando aquela trágica cena, paralisados. O pai, um policial que deveria
proteger a todo custo sua família contra a violência das ruas, tira a vida da
própria esposa, sai para a rua, pega o carro e se dirige para a frente do
batalhão da polícia militar. Freia o carro bruscamente, desce, anda para o meio
da rua, aponta o revolver para sua cabeça e atira sem vacilar. Cai, ali,
naquele asfalto sujo, sem vida.
Pra ele, tudo terminou ali. A vida, a
família, o trabalho, os amigos, inimigos. Terminou a fuga de algo que só ele
sabia. Mas a história daquela família não pode se resumir, apenas, ao último
momento, ao último dia. Há, pra trás, toda uma história que fala do primeiro
encontro, do namoro, de momentos felizes, do casamento, do nascimento dos
filhos, de planos e projetos pro futuro, da formação de uma família. O que
aconteceu com os relacionamentos? Onde pararam de se comunicar? O que foi feito
do amor? A individualidade, o egoísmo, sentimentos baixos, mesquinhos, fazem
com que fiquemos cegos para os problemas de nossos vizinhos, que pedem socorro,
mas não conseguimos identificar esse grito angustiado e mudo, porque não
prestamos atenção nos rostos, nos olhares, nas fisionomias. Não temos tempo pra
isso.
E, assim, o homem caminha para a sua
própria destruição, dirigindo o carro, velozmente, rumo ao precipício que o
aguarda de braços abertos, porque, o que o ser humano tem de mais valioso – o
amor ao próximo – sentimento que deveria estar impregnado no seu coração, está
desaparecendo e dando lugar a um homem revestido de fios, baterias, graxas,
parafusos, chips, memórias programadas. Esse é o homem do século vinte e um.
Carlos Prestes
Joinville
(SC), 3 de março de 2021