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sábado, 12 de fevereiro de 2022

A Lenda do Cavalo

  

Há tantas histórias interessantes vivenciadas pelo professor do sistema modular nessas andanças pelo interior do estado, tanta coisa pra falar. Basta realizar uma reunião informal entre amigos professores da velha guarda, num final de semana, numa manhã de domingo ensolarado, na varanda da casa do professor Medeirinho (por que não?), no Tenoné, acompanhados por uma boa música cantada ao violão, dedilhado pelo Nonato Bandeira, Valdir Guilherme, Arnaldo Rodrigues ou Jorge Coutinho – estamos bem servidos de artistas populares. 


Falo isso, porque outro dia estivemos lá, na casa do prof. Medeirinho, eu, Carlos Prestes, e o professor Ribamar Oliveira. Fomos para o andar de cima e, de lá, avistamos o quintal repleto de árvores frutíferas. Não havia música, nem textos gravados de declamações de poemas, mas, naqueles momentos vivenciados, em que fomos falar um pouco da Antologia poética do SOME, um livro sonhado há décadas por nós, aproveitamos para lembrar tempos vividos no modular. Todos nós tínhamos sempre uma história interessante pra contar e relembrar.


Quem não tem uma história interessante pra contar do sistema modular? Nessas conversas, percebi que um simples detalhe, um comentário acerca de algo engraçado, um incidente, um dia de chuva, um passeio, problemas com a prefeitura, um projeto de intervenção, aulas extraclasse, uma paquera, traição, crendices, passeios, festas escolares, festas tradicionais, despedidas, morte, tragédias, linguagem local, datas comemorativas, situação da comunidade, estradas, tudo, tudo, tudo pode ser transformado num grande conto, numa excepcional crônica do dia-a-dia, num poema que descreva o real e o imaginário local, suas sensações, emoções, raiva, alegrias, protestos, sonhos, esperanças, sim, disso tudo pode ser feita uma releitura através do olhar investigativo do pesquisador que transporta os conceitos, os objetivos e os problemas do senso comum para uma pesquisa analítica, científica com perguntas a responder e um trabalho a concluir. Como poderíamos imaginar que esse senso comum viria para em nossas mãos, nas mãos de tantos e tantos profissionais da educação ou não, através do livro impresso?


É isso mesmo: o senso comum virou ciência. E, na verdade, a ciência de laboratório começa com ele.


Essa história, que também é uma história simples, pode vir um dia a ser lida num livro, não só por mim, ou pelo professor Ribamar, pelo Medeiros, ou pelo Sérgio Bandeira, catedrático da UFPA em Abaetetuba que transita entre a ciência e o senso comum, entre a pesquisa e o imaginário. E o imaginário realmente fascina qualquer um.


Bem, essa história, como diz o título, fala sobre a lenda de um bando de cavalos que assombravam as pessoas à noite.


Tudo começou quando o professor Jorge Tostes, um parceiro de caminhadas e de circuitos do modular – viajamos por muitos lugares na mesma equipe – me contou, certa vez, quando estávamos em São Miguel de Pracuuba, que, numa de suas viagens, foi para, não lembro bem o lugar, parece que, para Limoeiro do Ajuru, que fica na microrregião de Cametá.


Ao chegar à casa dos professores, apresentou-se a seus colegas de equipe que iriam dividir a casa com ele durante dois meses. Durante a semana, tudo transcorreu normalmente, com os professores cumprindo suas tarefas na escola diariamente. Não havia muito  que fazer. Iam e vinham da escola para casa. À noite, na hora do jantar, conversavam sobre os mais diversos assuntos, brincavam, contavam piadas até chegar o sono.


Quando chegou a sexta-feira, finalmente a sexta-feira, todos foram para a escola dar aula. Lá, pelas dez e meia da noite, voltaram para casa todos os professores juntos. Jorge Tostes estava animado arrumando sua bagagem, pois queria pegar o primeiro transporte pra Belém pela manhã bem cedo.


- Vai sair de madrugada? Perguntou um professor.


- Acho que sim. Que horas tem transporte pra Belém? Perguntou Jorge Tostes.


- O primeiro sai às cinco da manhã. Mas fica longe daqui o terminal – disse outro professor. – Daqui pra lá dá mais ou menos um quilômetro.


- Tudo isso? Perguntou Jorge Tostes. – Não tem problema, eu vou assim mesmo.


- Só tem uma coisa – Comentou outro professor.


- O quê? Perguntou Jorge Tostes.


- O pessoal daqui da vizinhança comenta que toda sexta-feira de madrugada, eles ouvem o relincho de um bando de cavalos que passam correndo por essa rua, vão e voltam. Dizem que tem gente que já viu. Por isso que, nas madrugadas de sexta-feira, ninguém sai na rua – disse o professor.


- E é verdade isso? Vocês acreditam nisso? Perguntou Tostes.


- Se é verdade eu não sei, mas vamos descobrir hoje. Só sei que falaram que, um dia, numa sexta-feira, ouviram barulho de tropel de cavalos correndo na disparada pela rua. Um vizinho olhou pela brecha da janela e disse que viu um monte de cavalos correndo pela rua em disparada, um ainda parou e olhou na direção da janela. Ele ficou branco como a neve de medo. Fechou a janela rapidamente e cuidou de ir deitar.


O professor Tostes ficou pensando naquilo por um pouco de tempo, mas depois foi dormir, pois tinha que acordar cedo.


Quando o relógio despertou quatro e vinte da manhã, o professor Tostes cuidou de se levantar rapidamente, tomou banho, escovou os dentes, se vestiu e se preparou para sair. Ninguém mais iria pra Belém, somente ele, nenhum colega, nenhuma companhia até o terminal. Ele teria que fazer essa caminhada sozinho, e tudo que ele não queria, naquele momento, era pensar nos cavalos.


Despediu-se do pessoal, abriu a porta, olhou em volta, nenhuma alma viva, ninguém, a rua estava completamente deserta, as casas fechadas, a noite clareada um pouco pelo luar, dava aquela sensação de mistério, e fazia lembrar até as cenas daquela trilha inóspita da Pensilvânia que levava ao castelo do conde Drácula. Tudo isso vinha à mente, mas ele balançava a cabeça e procurava dar fuga à imaginação pensando em coisas boas e alegres que o fizessem ter coragem suficiente pra descer aquela rua no final da madrugada. O professor pensou na família, esposa e filhos, e viu que valia a pena se arriscar naquele fim de noite, num lugar que ele não conhecia ainda, mas que já o chamava para grandes desafios que, certamente, iria se lembrar por muito tempo. Colocou a mochila nas costas, fez o sinal da cruz, fechou a porta atrás de si e se foi.

 

Prof. Carlos Alberto Prestes (poeta, escritor, contista, cronista, pesquisador, ex professor de Língua Portuguesa e Literaturas Brasileira e Portuguesa do SOME).


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