É incrível como o tempo mais que depressa, consome nossa carne, nossa pele, o rosto fica enrugado e os olhos com olheiras. Mas também é incrível a capacidade que temos de guardar recordações, aqui, na caixinha da nossa cabeça, onde repousa toda uma vida vivida, histórias escritas e contadas, imagens, paisagens, olhares, rostos, lutas, conquistas, derrotas, alegrias, gargalhadas, tristezas, vídeos K-setes, gravadores à pilha, Toca discos (lembram?)... Tanta coisa que ficou pra traz, tantas impressões visuais, subjetivas, emotivas. Tudo bem guardadinho como se estivesse dormindo o sonho das mil e uma noites. Mas essas impressões, essas memórias, podem despertar de uma hora pra outra, se forem provocadas. Sim, provocadas, despertadas, como se acordassem de um sonho, um belo sonho. E elas foram, meus caros senhores e minhas caras senhoras. Ah, se foram!
Quero chamar a atenção, com isso, para a velha guarda do Sistema Organização Modular de Ensino - SOME, os chamados carinhosamente de “Jurássicos”. Atentem para o relato, meus amigos. Esta é apenas uma pequena parcela do que todos nós já vivemos nos anos áureos do Sistema Modular. Com certeza, cada um de vocês vai lembrar de alguma aventura que viveu durante sua caminhada como professor ou professora do SOME nos anos 80 ou 90. E começo meu relato assim: durante o período em que desenvolvi minhas práticas educativas, através do Sistema de Organização Modular de Ensino – SOME, vivenciei momentos interessantes e marcantes durante essas viagens pelos rincões do Estado do Pará. O SOME é uma política pública idealizada no ano de 1979 e que começou a funcionar em território paraense a partir de 1980, em quatro municípios, descritos a seguir: Igarapé Açu, Igarapé Miri, Curuçá e Nova Timboteua. Portanto, há 42 anos o SOME se encontra atendendo os filhos dos indígenas, camponeses, quilombolas, assentados e o povo interiorano.
Apresento-me aqui, com um nome fictício. Atenderei pelo nome de Abir Arievilo. Nessas andanças, darei ênfase a um momento de aprendizagem quando estava em São Félix do Xingu, um município bastante longe, no sudeste paraense, com aproximadamente 1.052 km de distância da capital Belém, e, naquele tempo, a duração da viagem era de, aproximadamente, 48 h, e eu estava viajando com uma equipe de sete profissionais da educação. Depois que chegamos ao município, procuramos a escola na qual iríamos dar aulas; apresentamo-nos como professores do SOME e, durante as semanas seguintes, colocamos em prática nossas atividades com os alunos, cumprindo um período curricular que duraria, em média, dois meses. No entanto, para surpresa nossa, numa quarta feira, ao chegarmos à escola para ministrar aulas pelo turno da noite, a diretora chama a equipe e faz o seguinte comunicado:
- Prezados professores! Na quinta-feira, em virtude das festividades de comemoração do Santo Padroeiro do município, não haverá aula. E na terça feira, devido ser o aniversário do município, também não haverá aula. Portanto, estou liberando vocês de suas atividades, e só retornarão na próxima quarta-feira, quando vocês terão aulas.
Neste momento, todos nós nos olhamos e ficamos, em parte, satisfeitos e alegres, já que ficaríamos de folga durante esses dias e teríamos momentos de lazer e tempo pra conhecermos mais o município, já que recebemos diversos convites dos pais e alun@s para almoços, nas comunidades.
Durante o intervalo de 15 minutos das aulas, nesta mesma noite, um dos colegas saiu perguntando prós professores quem gostaria de visitar sua família em Belém. De inicio, ninguém se interessou, todos tinham vontade de rever seus familiares, mas, pela distância que tinha que ser percorrida, desanimava qualquer um. Diziam que, logo, cumpririam todo o calendário escolar de 50 dias letivos em São Félix e, assim, poderiam voltar de uma vez para suas casas, para suas famílias. Por isso, pensavam, era melhor esperar o término das aulas. Além disso, pesavam as despesas com as quais teriam que arcar, embarcando numa viagem pra Belém.
Esse colega, que eu vou chamar de Expedito, não se deu por vencido e, como que num último esforço, virando-se para mim, disse:
- Vamos, meu amigo Abir! Sei que estás com saudades de sua esposa e de seus filhos. Logo, não vais perder esta oportunidade.
Fiquei pensativo, parecia uma boa oportunidade para rever a família. Afinal, a diretora da escola mesmo havia nos liberado até terça-feira. Por que não aproveitar esses dias de folga? Eu pensava e pensava, balanceei um pouco, pensando os prós e os contras, e, finalmente, respondi:
- Sabe que você tem razão! Quem é o ser humano que não sente falta de seus familiares?
- Sim, claro professor! - Respondeu com um ar de vitória o meu caro colega Expedito.
- E sabe o que é incrível? Continuei - É que, no módulo passado, eu estava no último município da Ilha do Marajó e, agora, cá estou eu no último município do sudeste paraense. No próximo módulo, estarei em Terra Santa, e sei que não terei mesmo chance de ficar um pouco mais perto dos meus amigos e familiares, então vamos.
Após as aulas, corremos para a casa dos professores para pegar nossas mochilas e, depois, pernas pra que te quero, voamos pro terminal rodoviário, já que o ônibus sairia às 23 horas. Durante o retorno da escola para a casa dos professores, os outros cinco colegas diziam não acreditar que faríamos essa viagem. Quando chegamos à casa, os colegas não paravam de fazer brincadeiras sobre a gente querer fazer uma viagem de tão curto espaço de tempo, tão poucos dias, pegando uma estrada muito ruim, uma longa distância de trechos e horas e horas de viagem.
Não teve jeito, as brincadeiras vinham aos montes, mas não demos bola, merendamos e partimos para o terminal, chegando poucos minutos para a partida do transporte coletivo da Transbrasiliana. Neste tempo, recebíamos a passagem de avião da SEDUC até Marabá e, depois, tínhamos que pegar um teco-teco até o município de destino e a outra passagem de volta, no final do módulo. Portanto, durante o módulo, mesmo quando havia dias facultados pelo município, não tínhamos direito de vir até a capital do Estado. Quando insistíamos nisso, as despesas tinham que ser pagas do nosso próprio bolso. E lá, na sede da SEDUC, ninguém podia saber dessas nossas saídas do munícípio onde estávamos trabalhando.
Com a adrenalina a mil, nem havia parado pra pensar direito nos percalços que encontraria tanto na ida para Belém, como na volta para São Félix do Xingu. Foi só depois que entrei no coletivo, que fui perceber que a viagem seria cansativa, e que teríamos que ter muita calma durante toda aquela longa e inesperada viagem, já que, naquele tempo, início da década de 90, a estrada estava completamente cheia de atoleiros. Porém, mesmo o município tendo mais de 10.000 km de estradas, as autoridades públicas pareciam não ter nenhum interesse em mandar pavimentar o principal meio de deslocamento das pessoas e, principalmente, de escoamento de mercadorias e produtos produzidos pelos comerciantes locais, que sofriam muito com a deficiência do transporte, do qual tinham total dependência, pois era o único meio de escoamento dos produtos com o qual podiam contar, a fim de que pudessem negociar com outras regiões e localidades. O mesmo acontecia com as vendas de outros produtos que vinham de outras cidades.
Como sempre, quem pagava o famoso “pato” eram os comunitários que tinham necessidades da via, da qual, já comentamos, apresentava as condições mínimas de trafegabilidade. Tudo isso, vinha na mente, como um flash. Como se não bastasse, ainda tinha o problema da segurança pública. Os números de assaltos eram altos, durante aquele período. Os colegas falavam pra gente, tentando nos intimidar, meter medo mesmo:
- Cuidado, professor! Não se meta nessa enrascada, não! Nessa época, tá cheio de ladrão, parecendo rato de asfalto na beira da estrada, só esperando o ônibus passar com passageiros cheios de grana no bolso. Eu ouvi falar uma vez que mandaram todo mundo tirar a roupa, homem e mulher, e ficou todo mundo nu no ônibus. Isso foi pra dar tempo dos bandidos fugirem.
Eu achava graça, me divertia, mas no fundo, bem lá no fundo, eu sabia que essas coisas aconteciam mesmo, com frequência, naquela região. A viagem durou 48 horas; saímos na quarta-feira com previsão para chegarmos, portanto, na sexta. Durante esses dois dias, paramos em alguns lugares para almoçar e jantar ou merendar. Passamos por Xinguara, Marabá e Goianésia do Pará. Lembram os filmes de faroeste que assistíamos na televisão em preto e branco? Pois é! Esses lugares lembravam as cenas desses filmes. Pareciam cidades de bang-bang. Passamos muitos aperreios durante a viagem, muita chuva que deixava a estrada ainda mais difícil de trafegar. Com isso, eram inevitáveis os sacolejos do ônibus que se equilibrava aqui e ali pra não cair em atoleiro. Dormir era quase impossível naquelas poltronas de couro duro, cujo calor era insuportável porque as janelas do ônibus tinham que ser fechadas em decorrência da chuva, e esse mormaço fazia a gente agonizar de suor. Também passamos por Moju e Alça viária, até chegarmos ao nosso destino, a nossa querida cidade de Santa Maria de Belém do Grão Pará, a cidade das mangueiras, dos poetas e seresteiros do Bar do Parque.
Eu e meu colega Expedito ficamos o sábado e o domingo com os nossos familiares. Aproveitamos todo o tempo possível para paparica-los e sermos paparicados. Ficamos apenas dois dias na moreninha cidade de Belém, nem deu pra dormir a noite de domingo na minha caminha quente e confortável. Tínhamos viagem marcada para as 23 horas. O senso do dever lutava intimamente numa luta feroz com a vontade de ficar, mas o senso do dever venceu aquela luta épica e, um pouco antes das 11 horas da noite, chegamos ao terminal rodoviário de Belém, entramos no ônibus da Transbrasiliana e pegamos a estrada para São Félix do Xingu. Na terça, depois de todos os aperreios que a viagem causou, como se fosse uma repetição da primeira, finalmente, por volta de meia noite, chegamos ao nosso destino, inteiros, porém, “mortos” de cansados e com dores nas colunas, mas muito felizes por termos visitado familiares e amigos. Foram apenas dois dias, mas dois dias memoráveis.
A hora da despedida nunca é boa, nem alegre, pois parece que algo é arrancado de dentro de nós sem anestesia, como que puxassem e, naquele lugar, ficasse apenas um buraco jorrando sangue. Que o diga Milton Nascimento na sua canção Encontros e despedidas, de 1985, uma mistura de letra e melodia que diz que “a hora do encontro é também despedida”. Isso faz a gente parar para refletir sobre as coisas, sobre a brevidade da vida e, por isso, a sua importância. Portanto, uma das coisas que valorizam sobremaneira a vida, essa breve existência, é estar com os amigos e com a família. Recomendo que ouçam essa bela canção.
Essas experiências e aprendizagens que tivemos durante esta viagem, me fazem lembrar dos diálogos com os condutores do transporte, das paradas para almoçar, jantar e merendar, e das conversas informais em nosso redor, já que o meu parceiro do lado era muito brincalhão e conseguia aglutinar as pessoas com os mais diversos tipos de assuntos.
Valeu a pena a viagem pra rever familiares e amigos? Alguém pode perguntar, e, até eu mesmo cheguei a me indagar. Essa mesma pergunta eu faço a você, meu caro colega das décadas de 80 e 90. Você, que é um Jurássico. O que você faria? Eu já tenho a minha resposta: faria tudo de novo, mesmo com a idade que estou hoje. Sabem por quê? Por que as pessoas que mais nos entendem e, por essa razão, nos valorizam, estão do outro lado do Pará nos esperando para dar um grande e apertado abraço. Por eles, vale a pena fazer tudo de novo.
Crônica dos ex Professores do SOME: Carlos Alberto Prestes e Ribamar de Oliveira.
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