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segunda-feira, 10 de outubro de 2022

MINHA MÃE DONA WALDA

 


PRESTES, Carlos Alberto

 

Quando Deus, no seu querer, te criou, bem sei que te criou já como uma humilde pastora que apascenta seu rebanho nos altos e baixos das montanhas verdejantes, rígidas, de concreto e de ferro das zonas urbanas e rurais, no Brasil ou pra além do Jordão. São lindas as luzes multicores que enfeitam a cidade no mês de natal. Mas ainda mais linda é a zona rural iluminada pela luz do luar e infinidades de estrelas, clara luz que clareia a noite, diminuindo os nossos medos de fantasmas, vira-porcos e lobisomens. Claro, deves ter feito um pedido pra aquela estrela cadente que viste atravessando a escuridão do céu. Esse pedido deve ter te acompanhado anos e anos, guardado na mente do teu coração. O que será? Não sei! É um segredo teu e de Deus, assim como todos nós temos os nossos segredos, os nossos desejos e pedidos.


Quando nasceste o céu te sorriu e deu graças, porque sabia que nascia contigo a esperança de um mundo mais sensível, mais humano, capaz de se condoer com as lágrimas alheias, com a miséria do pobre, com o soluço da criança. És mulher! E a esperança está na mulher, porque só ela consegue compreender tão profundamente o que vai no íntimo do ser humano. Só o amor dela, unicamente, pode refletir um vislumbre do amor de Deus. Quem pode compreender o amor de Deus pelo ser humano? Quem pode compreender o amor de uma mulher, de uma mãe, pelo filho ou filha?


Eu não te vi brincar de boneca com as tuas coleguinhas da infância. Eu nem sabia que tu tiveste infância. Para mim, na minha imaginação, tu sempre foste adulta. Eu nem sequer vi tuas bonecas, nem sei como elas, por acaso, se chamavam: Suzi, Bianca, Barby, sei lá, apenas estou imaginando algum desses nomes que crianças geralmente colocam em suas bonecas. Nem sei se tuas bonecas eram de plástico ou feitas de pano, como a Emília do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Não sei se conheceste as personagens desta história de Monteiro Lobato: o Visconde de Sabugosa (um erudito, feito por tia Anastácia a partir de uma espiga de milho), Marquês de Rabicó (um leitão guloso e covarde, é o animal de estimação de Narizinho), Dona Benta (avó, proprietária do sítio), Tia Anastácia (quituteira de mão cheia, braço direito de dona Benta), Tio Barnabé (homem da roça que mora e trabalha nas propriedades de Dona Benta. Sabe todos os mistérios do mato), Narizinho (Lúcia, a menina do nariz arrebitado), Saci Pererê (vive azucrinando a vida de todos no sítio), a Cuca (mora na floresta, ao lado do sítio), Pedrinho (mora com a mãe na cidade, mas passa as férias no sítio), Emília (boneca de pano feita por Tia Anastácia para Narizinho brincar. Em uma aventura pelo reino das Águas Claras, a boneca toma uma pílula e começa a falar). No meu tempo, eu cresci assistindo este programa na TV em preto e branco ainda. Mas no tempo de minha mãe nem se tinha televisão em preto e branco, nem sei se tinha o programa.


Eu não vi quando tu deste os primeiros passos, tremendo com medo de cair, quando tua mãe, minha avó materna, do outro lado, a alguns passos de ti, agachada, de braços abertos, batia palmas e te chamava, dizendo: “vem filha! Vem! Não tenha medo que mamãe tá aqui pra te pegar!” Nada ficou desse tempo. Nenhuma foto, nenhum retrato tirado na Kodak para guardar a história daqueles primeiros anos, teus primeiros anos, teus primeiros passos, a roupa, o vestidinho, o penteado, o sorriso.


Mas tu venceste aquele primeiro obstáculo. Andaste e nunca mais paraste. Por detrás, invisível, estava uma mão delicada, pronta pra te amparar, pra te guiar os passos, porque tu eras uma criança que precisava dos braços paternos e das mãos maternas.


Depois chegaste à adolescência, aquela idade que a gente sonha poder tudo, que a gente voa até às nuvens, que a gente ama desesperadamente quase sem querer, sem saber o porquê, onde a liberdade é quase sem limites... Quase, eu disse quase. Porque um mundo sem regras, sem normas, sem limites, perde toda a sua beleza natural, a sua essência estética, os seus valores e princípios que fazem parte do nosso DNA desde quando se entende que o mundo é mundo. Mas a tua adolescência foi a de um tempo que aconteceu quase beirando a infância, lá pelos anos da década de cinquenta, uma adolescência no interior de Manaus, na ilha da Trindade, onde teu pai era pescador, homem rígido, sério, de poucas palavras, de costumes antigos, porque o tempo também era antigo. Bem diferente da adolescência do meu tempo, e mais diferente ainda da época dos teus netos e netas, a geração da tecnologia, do notebook, do celular, da internet, das redes sociais.


Tu cresceste, e tudo ao teu redor cresceu junto contigo. As ruas do teu bairro começaram a ficar pequenas para ti. Então, pegaste uma folha de cartolina e lápis de cor, e desenhaste duas asas – as tuas primeiras asinhas – pintadas com as cores dos olhos da tua imaginação. Depois, quiseste voar, e voaste como adulto algum poderia jamais fazer em toda uma longa vida. Sobrevoaste o teu bairro e atua cidade, atingiste as nuvens do céu e deste a volta pelo mundo, este pequeno e grande mundo, que me lembra até aquela velha história escrita em 1872 de “A volta ao mundo em oitenta dias”, brilhante romance do escritor francês Júlio Verne. Não se contentando, ultrapassaste os foguetes e chegaste ao limiar do universo, antes mesmo do primeiro homem pisar na lua. Tudo isso fizeste quando eu, ainda, não fazia parte do teu mundo. E nem imaginavas que eu faria, eu e os outros filhos. Não tinhas ideia de como seríamos, de nossos rostos, cabelos, a cor, o sorriso, a personalidade, o caráter. Sim, tu correste o teu universo antes de existirmos. E o mais incrível é que foste tão longe e... Quem sabe um dia, eu irei também.


O tempo foi passando, porque o tempo não tem freio, seja ele cronológico ou psicológico, e tu foste crescendo, o mundo foi ficando pequeno e apertado, e as responsabilidades do dia-a-dia foram ocupando o tempo da tua imaginação. Veio o namoro sério com o cametaense Raimundo Leopoldo Prestes, o noivado, o casamento ainda na flor da idade, o primogênito dos filhos, depois outro e outro e outro, e as tuas bonecas foram se distanciando, e se perderam no quarto das tuas lembranças.


De lá para cá, não descansaste um instante. Trabalhas noite e dia, e, muitas vezes, entras pela madrugada, velando e orando pelas tuas crianças de todas as idades, que agora não são mais bonecas de pano, ou de borracha, ou de plástico, inertes, sem fôlego de vida, com sorriso preso no rosto. Agora, são crianças que respiram, de carne e osso, com coração que bate, que sentem dor, fome, ficam tristes, adoecem, falam e dão gargalhadas. Essas crianças roubaram o teu tempo de mocidade, os sonhos que tinhas ainda pra sonhar, o terceiro grau escolar, as viagens que tinhas pra viajar. Mas tu nunca reclamaste, cumpriste o teu papel de mãe, simplesmente sendo mãe, amorosa, dedicada, com preocupação constante. Este era o teu mundo. Este era o teu palco que pisaste como quem vai à busca de receber o Oscar. Este ainda é o teu palco: a casa, o lar, a família.


Ninguém sabe, ninguém vê, ninguém ouve nem se importa com o teu suplício por causa da criança (aquela criança que cresceu) que está nas ruas geladas, trabalhando, vagando com “amigos” pelos vendavais dos prostíbulos. Estará bem? Tu pensas, com o coração aflito, pois o mundo moderno não te permite deitar a cabeça no travesseiro e dormir aliviada, sabendo que o dever daquele dia está cumprido, porque o filho, teu filho, está nas ruas a vagar, sem se preocupar se dormes ou não.


Hoje, mesmo a criança tendo crescido, tu ainda velas por ela todas as noites, porque, para ti, ela nunca deixará de ser criança, aquela criança que tu carregavas no colo e fazias adormecer, cantando uma cantiga de ninar, aquela cantiga de ninar que aprendeste com tua mãe, minha avó, tão antiga, tão simples como o boi da cara preta, como Dominique, de 1964, interpretada por uma cantora chamada Giane, de quem eu nunca ouvi falar, mas me lembro da canção que diz assim:


Dominique, nique, nique / sempre alegre esperando alguém que possa amar / o seu príncipe encantado / seu eterno namorado / que não cansa de esperar /


Dominique tem um sonho / e alguém pode realizar / há de vir um cavalheiro que a conduza para o altar /


Dominique, nique, nique / sempre alegre esperando alguém que possa amar / o seu príncipe encantado / seu eterno namorado / que não cansa de esperar /


Certo dia, de passagem na avenida, alguém notou / o doce olhar de Dominique / ela então se enamorou /


Dominique, nique, nique / sempre alegre esperando alguém que possa amar / o seu príncipe encantado / seu eterno namorado / que não cansa de esperar /


O rapaz com um sorriso logo pediu sua mão / e a visão do paraíso fez pulsar seu coração /


Dominique, nique, nique / sempre alegre esperando alguém que possa amar / o seu príncipe encantado / seu eterno namorado / que não cansa de esperar /


Apesar da pouca idade Dominique percebeu / que a maior felicidade foi o amor que Deus lhe deu /


Dominique, nique, nique / sempre alegre esperando alguém que possa amar / o seu príncipe encantado / seu eterno namorado / que não cansa de esperar /


Mas o tempo foi passando e a verdade apareceu / pois quem vive só sonhando desta vida se esqueceu /

Dominique, nique, nique / sempre alegre esperando alguém que possa amar / o seu príncipe encantado / seu eterno namorado / que não cansa de esperar /


Uma lágrima caída a rolar dos olhos seus /numa tarde de domingo, o rapaz lhe disse adeus / Dominique, nique, nique sempre triste a chorar o amor que se acabou / o seu príncipe encantado / seu eterno namorado / que se foi e não voltou.


Somos como as bonecas que nossas mães tiveram um dia: ficamos velhos e desgastados, e, às vezes, até desaparecemos por muito tempo, cansamos, constituímos família e até morremos, mas... lá no fundo, nunca deixaremos de ser as suas crianças. E isso é um ciclo que se repete conosco e nossos filhos, e se repetirá com nossos filhos e nossos netos. Talvez no fundo, no fundo, nós só queremos ser como Dominique, alguém que espera o seu príncipe encantado ou sua princesa encantada, que prefere viver num mundo de bonitas ilusões do que encarar a realidade de um mundo feio e devastado por causa do egocentrismo humano.


Quando o mundo nos vira as costas e nos apedreja com o furor das decepções, tu estás lá, no portão da casa, a esperar, para dizer: “Tu és meu filho amado, em ti tenho prazer! Sempre estarei ao teu lado!”


É verdade. Mamãe sempre está aqui, mesmo não estando. E agora eu fico olhando essas rugas que fazem parte desse processo natural da vida, tomando conta do teu rosto. Parece que tira a beleza. Há uma tentativa de tirar a beleza, apenas uma tentativa, mas não tira. Porque, ali, está a experiência de uma história única, que nenhum escritor poderá escrever com precisão. Muita coisa irá faltar no papel, muitos detalhes que nem lembramos, porque a vida está sempre em movimento, e cada instante vivido é uma grande história a ser contada. Esse mistério, Deus guardou com ele, pra um dia contar pessoalmente a cada um de nós. Ali, também, está guardadinha, por detrás dessas rugas, aquela menininha que brincou de boneca, que pulou Macaca, que brincou de Pata cega, que fez tudo o que um dia eu fiz também.


É... eu descobri que minha mãe foi criança um dia que nem eu. E que faz aniversário, apaga a velinha, envelhece e se emociona ainda...que neum eu. 

domingo, 24 de julho de 2022

UMA EXPERIÊNCIA NOS RIOS DE ABAETETUBA


     Isto não é ficção, é uma história real, de pessoas reais que aconteceu nos idos de... algumas décadas passadas. E vamos começar por onde se deve começar. Pois bem, essa história tem seu ponto de partida em Belém do Pará, na secretaria estadual de educação. Não é um conto. É uma crônica da vida como ela é. Sem fantasias, sem estrelismo, sem super-heróis com capas voadoras e olhos com poderes de energia nuclear. Então, tudo começa assim. O Sistema de Organização Modular de Ensino – SOME, política pública que tem 42 anos de atividades pedagógicas, pelos interiores do Estado do Pará, abriu processo seletivo em 2011 para o referido setor da Secretaria Estadual de Educação – SEDUC, sendo que, na ocasião, foram chamados diversos professores para atuarem no ensino médio.



     Dentre os professores, um se apresentou para o coordenador geral e este lhe disse que iria manda-lo para uma comunidade quilombola ribeirinha, no município de Abaetetuba. O professor olha para o coordenador a sua frente e, sem esperar mais nada, pergunta se seria possível lhe enviar para um local onde houvesse estrada, chão batido, onde pudesse pisar com segurança sem correr o risco de afundar os pés literalmente  nas águas desconhecidas do Abaeté. Pois assim, dizia, trabalharia muito mais feliz. No entanto, recebe a notícia de que só havia vaga naquela localidade para onde foi designado. Era pegar ou largar.



     Não houve jeito, teve que se contentar com o que a sorte lhe reservara. Levantou-se, deu meia volta e despediu-se. Tomando o caminho da rua, foi para casa muito pensativo, muito provavelmente, pensando na aventura que seria essa viagem por águas completamente desconhecidas para ele. Será que não corria o risco da embarcação afundar? Será que isso já não tinha acontecido antes com algum outro professor, ou outra pessoa qualquer?



     Aquele professor nunca havia feito qualquer tipo de viagem por rio; era homem da cidade, urbano, gostava de morar na selva de pedras, estava acostumado com o dia-a-dia das buzinas infernais, com o congestionamento do trânsito, com a poluição do cigarro e das fábricas que vão envenenando o ser humano de pouquinho em pouquinho sem que perceba, ou, se percebe, já nem liga.



     Aquela notícia da sua partida imediata chegara aos seus ouvidos na quinta-feira, e, no domingo, já teria que estar viajando para a sede do município, porque, na segunda-feira, bem cedinho, teria que se deslocar para a localidade onde iria exercer suas funções de educador. E não teve jeito. Teve que ir de rabeta mesmo. E o que é uma Rabeta? É um pequeno motor de propulsão que, acoplado na traseira de pequenas embarcações ou barcos, é conduzido manualmente, com a ajuda de um bastão que determina as direções. Por extensão, é uma pequena embarcação com esse motor, ou seja, uma canoa motorizada.


    No domingo, no horário da tarde, pega o ônibus que o levaria à rodoviária, no centro de Belém, em São Brás. Ao chegar, encontra com alguns professores que iriam para o mesmo município que ele. Apresentaram-se, foi um momento de descontração e entrosamento do grupo. Tomaram o ônibus e partiram rumo à Abaetetuba. A viagem não foi longa, mas deu tempo de conversarem e se conhecerem melhor. Ao chegarem à sede do município, dirigiu-se ele e parte dos professores para um hotel, onde passariam a noite. Outra parte do grupo foi para a casa de amigos ou parentes.



     No outro dia, bem cedo, acordam e encaminham-se para o refeitório, a fim de tomar o café da manhã com pão quentinho e manteiga. Todos já devidamente preparados com suas mochilas nas costas. A equipe desse professor era composta por três pessoas: ele e mais dois professores. Depois do desjejum, um dos amigos toma a iniciativa de convidá-los para se deslocarem até um porto particular, de onde sairiam numa rabeta em direção à localidade onde foram lotados.



     Ao chegarem ao porto, o professor percebe rapidamente que havia vários outros professores e professoras procurando se arrumar no pequeno casco. Todos iriam viajar no mesmo casco que ele? Com certeza, o professor se fez essa pergunta várias vezes, quase não querendo acreditar naquela possibilidade. Quantos? Seis, sete, dez? E todo mundo se equilibrando, encostado um no outro, de costas para as águas. Quem sabe, aquele professor estivesse pensando: “Será que vale a pena passar por tudo isso pra ganhar um pouco mais, uma ajuda de custo, um adicional no contracheque?”.  Mas logo, logo, o gelo é quebrado e alguém apresenta o rabeteiro (o que pilota a rabeta) e convida o professor para entrar no casco. Com muito cuidado, conseguiu descer da ponte do porto para dentro da rabeta, agasalhando-se com alguma dificuldade junto dos outros colegas. Que momento sublime! Inusitado! Esses e outros pequenos momentos que ninguém podia imaginar, mas que iriam, depois de décadas, entrar para os anais das memórias do SOME. E que memórias. A história se imortaliza nos pequenos e quase despercebidos detalhes, coisas tão simples das quais muita gente pode achar que não vale a pena se debruçar sobre os papeis em branco, com pena e tinta, numa escrivaninha do quarto de dormir e escrever, e escrever, e escrever até a noite findar e os primeiros raios de sol adentrarem pelos vidros da janela e desmancharem a penumbra do quarto. Não! A obra não pode ficar pra depois, tem que ser escrita para que não se perca nas esquinas de pedras.



     Era a primeira aventura no mar daquele professor. Era um marinheiro de primeira viagem, estava inseguro sim, porque aquilo tudo era desconhecido para ele. Mas, ao se deparar com a tranquilidade dos outros que estavam a bordo, conversando animadamente, trocando informações, desejou uma boa viagem a todos e aceitou o seu destino. O rabeteiro deu a partida no motor, que roncou forte, soltando um pouco de fumaça; o barco começou a se movimentar e a se afastar do porto, enquanto o professor segurava firmemente com suas mãos na beira do casco atrás de si. Era visível o seu nervosismo, como que sentisse um calafrio passando entre suas espinhas. Ao mesmo tempo, via a tranquilidade das professoras e de seus colegas, pareciam acostumados àquela vida.



       - Seja o que Deus quiser! Pensou.



     Já subindo o rio, a rabeta se encontrava, volta e meia, com pequenas ondas, movimento que as águas faziam quando se deparavam com as embarcações. Esse balanço das águas que faziam chacoalhar a pequena embarcação provocava náuseas, enjoo e medo no professor, que via, assustado, o barco subir e descer o rio. Após duas horas e meia de viagem e um pânico silencioso vivido pelo nosso personagem principal (acho que somente ele sentiu isso), finalmente o rabeteiro encostou o casco na ponte da casa dos professores, desligou o motor e o barulho que estava deixando todo mundo surdo e sem poder conversar, cessou. Agora tudo era completo silêncio que dava pra ouvir o casco roçando a ponte e a corda sendo amarrada no tronco. Todos descem para a ponte em silêncio, carregando suas mochilas e, quem sabe, dentro delas, muitos sonhos, quilos e quilos de sonhos.



     Aquilo tudo foi uma verdadeira adrenalina, mas apenas o início da adrenalina para aquele professor. Uma experiência que ele não iria esquecer jamais em todos os anos de sua vida, passasse por onde passasse, estivesse onde estivesse, fizesse cinco ou quarenta anos, mesmo que conhecesse outros lugares, jamais esqueceria aquela inusitada experiência nos rios de Abaetetuba.



     É! Há certos caminhos que caminhamos, em que a educação nos faz refletir sobre o quão grande ela é. E percebemos que ela precisa de nós para melhorar o homem. Por isso, parodiando Milton Nascimento quando canta “todo artista tem que ir aonde o povo está”, eu digo: “Todo educador tem que ir aonde o aluno está”. E ponto final.

 

Por Prof. Ribamar Oliveira

Revisão Professor e Poeta Carlos Alberto Prestes

Belém, 24 de julho de 2022

sexta-feira, 16 de abril de 2021

EM RIBA (304 versos, 76 estrofes, divididos em 15 cantos)

                 


                                                     Carlos Prestes                                                  



Canto I

 

Em Riba do mar

Há mar

Do mar de rio

Do rio-mar...

 

Estava lá, a entoar

Aquele canto de Belém

O mestre que mora no Maguá

Onde de tudo um pouco tem...

 

Essa história é longa por demais

Pois sim, que é

É a história de quem faz

De quem não perde a fé...

 

É professor, sim, é professor!

Nunca deixa de ser

Pois que o ideal de um educador

No peito há de sempre bater...

 

Como que andou esse homem

Pelas estradas do Pará

Conheceu as vicinais de ontem

Navegou no Tocantins e no Guajará...

 

Canto II

 

Ah!

Em Riba do mar

Há mar

Do mar de rio

Do rio-mar...

 

Olha que cultura sem par

Que vai descobrindo o cavaleiro andante

É o mundo dentro do Pará

Que vai memorizando o professor itinerante...

 

Costumes de falares

Falares do sul e do norte

Que às vezes trazem pesares

Se da língua materna causou a morte...

 

Aquelas cenas de hábitos e crenças

Que se acenderam no passado

Vêm agora como sentenças

De um memorial registrado...

 

Ouviu-se em Baião as histórias de visagem

Em Santa Cruz do Arari o cavalo da meia noite

Vigi Maria! É preciso coragem

Êta! Que superstição medonha como açoite...

 

Canto III

 

Ah!

Em Riba do mar

Há mar

Do mar de rio

Do rio-mar

 

E lá se vai o itinerante

Maleta de um lado, maleta de outro

Álcool e estêncil são seus amantes

Vai seguindo rumo ao porto...

 

O porto foi ficando pra traz

Aeroporto de cima já não se vê

O ônibus se perdeu nas vicinais

Isso tudo pra aula ter...

 

Tenha o aluno muito prumo

Pois é certo que precisa vencer

O estudo é sua bússola e rumo

É estudar e estudar pra crescer...

 

Crescer pra quê?

Pra se tornar um cidadão!

Cidadão de quê?

Desse teu tão usurpado chão!...

 

Canto IV

 

Ah!

Em Riba do mar

Há mar

Do mar de rio

Do rio-mar...

 

O chão que passa por usurpação

Quem ousa usurpar?

Com certeza é um fanfarrão

Que a tudo quer lograr...

 

Lograr é coisa de cidadão?

Não! Não! Pois que rouba a dignidade

E deturpa a tão cara formação

D’um caráter educado de verdade...

 

Verdade verdadeira é o que o país precisa

E pra ser honesto não tem limite de idade

O bom aluno aprende o que o professor ensina

E este, mesmo sendo mestre, não tem popularidade.

 

A popularidade é pra poucos, artista, ator

E alguns, mesmo sem faculdade

São chamados de doutor

Coisa que enobrece do tolo a vaidade...

 

Canto V

 

Ah!

Em Riba do mar

Há mar

Do mar de rio

Do rio-mar...

 

Onde a vaidade irá levar o cidadão

Se o livro não quiser abrir, não folhear?

Ao céu, ao mar, ao Paquistão?

Impossível saber navegar...

 

Navegar no sonho

Sonhar de olhos abertos

Não será nunca medonho

Se o caminho for o caminho certo...

 

Certeza do caminho do aluno

Pode ter o professor?

Sabe-se que cada pisada é um assunto

E o aluno terá que ser o seu descobridor...

 

Descobrindo ele segue do fundamental pro médio

Como o Dom Quixote do Pará

Um personagem etéreo

Como que das lendas do Muaná...

 

Canto VI

 

Ah!

Em Riba do mar

Há mar

Do mar de rio

Do rio-mar...

 

Oh, Muaná, cujas águas banham teus pés

Tanta coisa de ti pra contar

De são Miguel de Pracuuba, dos igarapés

No trapiche contam lendas de arrepiar...

 

Arrepiar quem? o professor

Que veio lá das bandas de Belém

Do outro lado do rio deixou o seu amor

Como um médico... Só pra salvar alguém...

 

Alguém que grita um grito mudo

Que o mundo não escuta

E aparenta se fazer de surdo

Enquanto o professor vai à luta...

 

Lutar com palavras é a luta mais vã?

E se luta, se luta com livros e ideias

Noite após noite até romper a manhã

Pois que a educação é uma panaceia...

 

Canto VII

 

Ah!

Em Riba do mar

Há mar

Do mar de rio

Do rio-mar...

 

Oh! Panaceia, deusa grega da cura

Filha de Asclépio, filho de Apolo

Que não fez da medicina uma usura

Mas a ciência cresceu em bom solo...

 

Solo da Terra de Santa Cruz

Que nunca foi uma pequena ilha

Nem mesmo de Vera Cruz

Mas este solo inspirou o autor de Marília...

 

Marília bela, das Minas Gerais

Onde o ouro reluzente abundava

Cujo pastor não veria jamais

Pois Moçambique o degredava...

 

Degredaram o artista de Marília

O cantor dos versos líricos

À boa terra não mais retornaria

Pra traz ficaram o amor e amigos...

 

Canto VIII

 

Ah!

Em Riba do mar

Há mar

Do mar de rio

Do rio-mar...

 

Amizade é uma planta rara

Que se semeia em terra fértil

Como regava o Nascimento em balada

Se assim for, nunca será estéril...

 

A esterilidade está no homem público

Que quer manipular o eleitorado

Com linguagem mansa como se fosse de púlpito

Ludibria o voto do pobre com papel passado...

 

Um passado que se mostrou sovina

Pois que de tudo nas mãos tem angariado

Nem admira que se vendeu por propina

Pois, com voto comprado, se fez deputado...

 

Deputado pra representar a quem?

Belém, Pará, ou o povo de Javé?

Com os olhos se vê que não representa ninguém

Muito menos que não tem sandálias no pé...

 

Canto IX

 

Ah!

Em Riba do mar

Há mar

Do mar de rio

Do rio-mar...

 

Com pés descalços anda o povo do interior

Seu Riba bem que sabe disso

Que é gente simples, que nem pensa em ser doutor

O querer deles é ter junto: pai, mãe e filhos...

 

Filhos são pra posteridade

Pra cuidar de quem nasceu, cresceu e trabalhou

E agora passou também da idade

Mas o seu legado deixou...

 

Deixou o quê de valor?

A educação pra uma nova geração

E se o filho não deixar em penhor

Certamente há de ter uma boa instrução.

 

A instrução vem com o professor

Que trabalha... e teima... e lima

E sofre... e sua... mais que um benfeitor

E isso se confunde com idas e vindas, lida e vida...

 

Canto X

 

Ah!

Em Riba do mar

Há mar

Do mar de rio

Do rio-mar...

 

Assim é a vida do professor beija-flor

Que invade a porta da casa, dá um beijo e parte

Mas é só pra matar o desejo do seu amor

Que cai no choro, quando, na manhã, o amante parte...

 

Parte pra onde o amante das ribeiras de Belém?

Pros furos dos rios, pras entranhas das vicinais

Pra Bujaru, Melgaço, Uruará, Ourém

Vai também pra Gurupá, Porto de Moz, bom por demais...

 

Demais... como os diálogos livres ao luar

Pois que pensava em ir pra um tal de Canadá

Mas quando estava já a me arrumar

Olhei n’água o luar. Então disse: vou ficar.

 

Ficar sim! Não vou sai daqui nem ir embora

Pois tenho a cara do Saci, sabor de taperebá

Cheiro de patichuli, lenda do caipora

Sou folclore, carimbó, siriá! Êta, meu Cametá!

 

Canto XI

 

Ah!

Em Riba do mar

Há mar

Do mar de rio

Do rio-mar...

 

Cametá, terra de gente nativa

Onde aportou o modular

Ali tem gente que escreve, muito criativa

Ali tem Gaia, tem João, poeta popular...

 

Popular na poesia, nos versos de cordel

Que misturam história, filosofia, pedagogia

Qual cantor da idade média, o menestrel

Qual trovador que derrama aos pés da senhora a poesia.

 

Poesia de versos livres, decassílabos ou sonetos

Que vão sendo construídos, passo a passo

Como que escritos em folhetos

Sem desandar no seu compasso...

 

Com passo rijo e sem vacilar

Vai o poeta, o professor ensinador

Pras bandas de Vigia se enlaçar

E dar folga pro seu amor...

 

Canto XII

 

Ah!

Em Riba do mar

Há mar

Do mar de rio

Do rio-mar...

 

Amor que é fogo que arde e não se sente

Como o soneto de fidelidade

Quem inventou esse contentamento descontente

Como o José de Carlos Drummond de Andrade...?

 

Andrade de Itabira de Mato Dentro

Que tirou a pedra do meio do caminho

Que criou a Rosa do povo e não do vento

E em mil novecentos e setenta e três o menino antigo.

 

Antigo como os casarões da belle époque

Que marginalizou nordestinos, indígenas e caboclos

Onde só o comerciante e elitista tiveram a boa sorte

Onde os soldados da borracha recebiam minguados soldos...

 

Soldos, sol dos desafortunados

Que vivem dum punhado de sal

Salário em balança pesado

Como no tempo feudal...

 

Canto XIII

 

Ah!

Em Riba do mar

Há mar

Do mar de rio

Do rio-mar...

 

Feudalismo medieval moderno

Que tem o nome inventado de capitalismo

Faz da lida do trabalhador um inferno

Homem livre Que vive como no tempo do escravismo...

 

Escravidão! Quem diria?

Em país republicano e democrático

Porque aqui se trabalha pro pão de cada dia

Eis um governo que tem deixado o povo apático...

 

Uma apatia que deixa sem cor

De tirar o sangue derramado nas ruas

Ruas onde sobrevoava o beija-flor

Flor sem laranjeira, sem pluma...

 

Plumas brancas, leves, suaves

Como a andorinha de ferro no ar

Voando como voam as aves

Até que um tiro te impeça de voar...

 

Canto XIV

 

Ah!

Em Riba do mar

Há mar

Do mar de rio

Do rio-mar...

 

Voar, arre égua que deu na telha!

Pra onde? Pra que lugar?

Pra Pasargada de Manuel Bandeira

Onde o amigo do rei não tem que lutar...

 

Lutar a luta de quem?

Porque as baionetas francesas

Não pouparam ninguém

E a revolução guilhotinou cabeças...

 

Cabeças que iluminaram o mundo

Um Brasil que se vestiu de positivismo

Cujos republicanos influenciou fundo

Com ordem, progresso e ismos...

 

Ismos, patriotismo, fundamentalismo

Que inventou a ordem e o progresso

Travestido de um falso civismo

cuja elite enricou a céu aberto...

 

Canto XV

 

Ah!

Em Riba do mar

Há mar

Do mar de rio

Do rio-mar...

 

Abertura nunca teve o professor

De falar e cobrar melhoria

Pois sendo o governo seu provedor

Dizia que era tudo fantasia...

 

Fantasia? Como fantasia?

Se não tem o aluno computador

Vai pra escola de barriga vazia

Que dói tanto no professor...

 

E o professor, quando é professor de verdade

Faz das tripas coração

Pra ver no rosto do aluno felicidade

E saber que educar não era uma ilusão...

 

A ilusão não está no dia-a-dia do mestre Riba

Que luta com palavras e com voz

A batalha do que aprende e do que ensina

E é exemplo pro velho, pro novo, pra nós.

 

Ah!

Em Riba do mar

Há mar

Do mar de rio

Do rio-mar...

 

Joinville (SC), 31 de março de 2021


OBSERVAÇÂO::  Obrigado, meu amigo Prestes, pelo presente antecipado.