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segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Minhas férias nos interiores do Estado do Pará




Durante minha adolescência, costumava passar as férias nos interiores do Pará, especialmente nos municípios de Viseu e Irituia, esta cidade de origem da família do meu pai. Lá, convivíamos com muitos parentes, incluindo minha tia Francisca Birilo de Oliveira, conhecida como Chiquinha, que tinha uma relação muito próxima com minha mãe. Muitas vezes ficávamos hospedados na casa dela, tanto em Belém quanto na entrada do município de Irituia, no nordeste paraense. O acesso era difícil, geralmente feito de kombi, devido à falta de ônibus e estradas ruins. Nessas férias, aprendemos sobre alimentação típica, tranquilidade e o estilo de vida pacato do interior. Mesmo hoje, quase aos 70 anos, guardo boas lembranças desses momentos, apesar da ausência de fotografias, recordando as brincadeiras e amizades da época.


Nesse período, a tia paterna, por ser a mais idosa da família, era frequentemente procurada pelos irmãos mais novos e sobrinhos. Isso favorecia o contato em Irituia, o que facilitava conhecer praticamente todos os parentes do lado paterno. Na época, o pai residia nas fronteiras do Estado do Amazonas devido à sua carreira militar, enquanto a família vivia em Belém do Pará com a mãe, em função da necessidade de dedicar-se aos estudos. Esse contexto contribuía para que, nas férias, fosse possível visitar diversas localidades do interior. Havia também um tio que morava nas colônias e trabalhava com agricultura, permitindo que se conhecesse melhor essa rotina. Entre os principais produtos cultivados estavam juta, tabaco e milho; além disso, havia criação de gado e pequenas plantações. O cultivo de mandioca tornou-se significativo apenas posteriormente.


As visitas proporcionavam a vivência dos hábitos locais, como acordar de madrugada para preparar e amarrar folhas de tabaco, que eram postas para secar, hábito comum entre 3 e 4 horas da manhã. Essas atividades representavam importantes fontes de renda para a família na região rural durante o final da década de 1960 e início da década de 1970, sendo parte da produção destinada à venda ou troca por alimentos essenciais. Além disso, a alimentação era complementada por carne de caça, criações domésticas como galos, perus, galinhas e gado, garantindo relativa autossuficiência alimentar.


A experiência que tive na adolescência foi fundamental para minha vida profissional, especialmente ao trabalhar no Sistema de Organização Modular de Ensino. Isso se deve ao meu conhecimento da realidade dos interiores do Pará, já que meus pais são de cidades do interior, como Viseu. Sempre visitei a família da minha mãe em São José do Gurupi, o que expandiu minha vivência nessas regiões e contribuiu para minha atuação futura.

terça-feira, 7 de janeiro de 2025

ATO SIMBÓLICO EM MEMÓRIA DO LÍDER GATILHEIRO QUINTINO DA SILVA LIRA, AOS 40 ANOS DO SEU ASSASSINATO





No dia 04 de janeiro, próximo passado, completaram-se 40 anos do assassinato de QUINTINO DA SILVA LIRA, comandante da resistência armada do chamado Conflito da CIDAPAR, cuja memória foi relembrada por Francisco Vasques (Chico Barbudo), Antônio Rodrigues e Ana Selma, membros da diretoria da Associação de Colonos Atingidos pela Repressão Privada e Estatal da Gleba Cidapar - PROREPARAÇÃO, e pela direção do Movimento Camponês Popular, Denilson, Diva e Lorena, em ato simbólico em seu túmulo no Cemitério de São José do Piriá, município de Viseu.


O conflito da Gleba CIDAPAR tem uma longa história, porque a região entre os rios Piriá e Gurupi, no nordeste do Pará, era ocupada por posseiros, garimpeiros, quilombolas e indígenas do povo Tembé Tenetehara – todos ameaçados de expulsão pela empresa JOAQUIM OLIVEIRA S.A. PARTICIPAÇÕES (JOSAPAR), muito conhecida nacionalmente pelo seu produto “Arroz Tião João” e regionalmente pela sua violência contra os colonos através de sua milicia armada, sediada em sua subsidiária PROPARÁ, comandada por James Vita Lopes (mais tarde condenado por participação no assassinato do deputado estadual Paulo Fontelles).


Os colonos da Gleba Cidapar somavam mais de 10 mil famílias, organizados em dezenas de vilas e localidades, além de suas respectivas posses e resistiram à expulsão de suas terras, fazendo um amplo movimento pacífico de massas que, em várias oportunidades demandaram junto aos governos estadual e federal. Os grileiros liderados pela JOSAPAR responderam com a violência de sua milicia privada, quase sempre com apoio policial, e passaram a assassinar lideranças locais, como aconteceu em 08 de janeiro de 1981 com o assassinato de Sebastião Mearim. Sem proteção do Estado, as comunidades se organizaram em grupos de autodefesa, para proteger seus bens e familiares. Sem, contudo, jamais abandonar a luta política e sindical em defesa dos seus interesses, sendo exemplo a marcha sobre Belém de cerca de 1.500 colonos, em setembro de 1983, onde falaram diretamente ao governador Jader Barbalho; que mais uma vez prometeu retirar os jagunços e resolver o conflito fundiário. Sem resultado. 


Diante da inoperância política do governo do estado, e da omissão das polícias estaduais, e até mesmo sua atuação conjunta com a milicia privada e pistoleiros, as comunidades resolveram criar um corpo de defesa armada. Para isto reuniu o grupo comandado por Abel o qual se somou ao grupo do Quintino, antigo posseiro da gleba Cidapar que tinha migrado para a Fazenda Cambará, entre o rio Piriá e o rio Guamá, onde liderou os posseiros diante da violência armada dos pretensos donos – que passaram a prover de segurança os posseiros, garimpeiros e colonos, tanto entre os rios Piriá e Gurupi, como entre os rios Piriá e Guamá, a chamado das lideranças comunitárias.


A guerra foi dura e violenta, com clara vantagem para os “gatilheiros”, como se autodefiniam os combatentes, que literalmente derrotou a milicia privada da JOSAPAR e outros fazendeiros e seus pistoleiros, em meados de 1984. Diante do crescimento político do movimento de resistência política e militar, e a ditadura militar passou a dar apoio logístico e orientar a Polícia Militar nas táticas antiguerrilha que tinha tido sucesso no combate à Guerrilha do Araguaia: ocupação de vilas, torturas, ACISO, implantação de olheiros e uso de guias locais, e não menos importante, a liquidação seletiva dos gatilheiros. 


O último combate da resistência armada ocorreu no Natal de 1984, quando a tropa de militares e pistoleiros foi emboscada, sofrendo baixas. Contudo, a PM mobilizou novas tropas e cercou os gatilheiros no sítio de Maximiano, onde mataram Antônia (companheira do Quintino) e Enock, e obrigaram a dispersão dos demais; tendo Quintino optado por se refugiar em Vila Nova, como já fizera em outras oportunidades. 


Com apoio de guia local, que traiu os gatilheiros, a PM chegou à casa do colono Florzinho, onde se refugiara Quintino. A PM cercou o local e Quintino tentou furar o cerco fugindo pelo quintal, onde foi alvejado.


Em 2023, o Ministério Público Federal abriu um Inquérito Civil para apurar os possíveis crimes dos quais é acusada a JOSAPAR, fruto da investigação do grupo de pesquisa da Comissão Camponesa da Verdade, apoiado pelo MPF e CAAF/UNIFESP. 


Já em 2024, a CONTAG, a FETRAGRI-PA e a PROREPARAÇÃO apresentaram requerimento de Anistia Coletiva à Comissão de Anistia do Ministério de Direitos Humanos e Cidadania, do qual aguardam julgamento. 


40 anos depois, Chico Barbudo reafirma sua avaliação de que o movimento foi vitorioso na sua principal bandeira: a garantia da terra para os seus ocupantes e, agora, o reconhecimento da natureza política do movimento, responsabilização empresarial pelos crimes cometidos, bem como reparação moral e material [Pela nota: Gilney Viana / Halyme Antunes].


* Figura 1 Quintino quando da sua primeira entrevista ao jornalista Paulo Roberto Ferreira. Foto de Raimundo Dias

* Figura 2 Da esquerda para a direita: Denilson, Diva, Antônio Rodrigues, Chico Barbudo, Ana Selma e Lorena.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

UM LUGAR CHAMADO AÇAITEUA

 



*Carlos Prestes

 

 

 

AÇAITEUA

 

Uma rua vermelha... De canto

Uma escola na entrada do lugar

Uma igrejinha, na qual o padre,

Vindo não sei de onde,

Vez por outra celebra missa.

Uma pracinha mal iluminada

Onde costumam se encontrar

Adolescentes enamorados.

Outra escolinha lá... No fundo da praça,

Esquecida.

Um carro de boi

Com um lamento ruidoso...

Eis o retrato de Açaiteua.

 

(Carlos Prestes)

 

 

 

       Há casos e casos a se contar. Casos amorosos, trágicos, horripilantes, tenebrosos, sim, casos e casos. Principalmente quando você já trabalhou como professor do Sistema Modular. Quantas histórias devem estar guardadas na memória de cada um desses professores aposentados e ativos. Quanto de histórias que já se perderam no esquecimento do tempo; e quantas histórias que já foram enterradas na morte de um professor. Se têm-se, atualmente, mil e trezentos professores ativos no SOME, temos, pelo menos, mil e trezentas histórias de memórias para contar. Ninguém precisa ser escritor pra dar vida a uma história de memória, basta soltar a voz e contar para alguém que, com habilidade suficiente para escrevê-la, irá imortaliza-la no blog do Riba, nas redes sociais e, também, muito provavelmente, em livro impresso.

       Deixe-me apresentar-me. Meu nome é Emos. É um nome fictício, assim como os nomes dos outros personagens que aparecerão nessa história. Porém, apenas os nomes são fictícios, porque a história é totalmente verdadeira, assim como tantas outras histórias narradas por autores do SOME, como as histórias do professor Abir Arievilo.

       Traçando essas linhas em meu velho notebook, companheiro de todas as horas, que me aguça a imaginação, levando-me aos tempos em que fui um professor itinerante do SOME, lembrei-me – Como não poderia deixar de lembrar? – de casos e mais casos por onde passei, nas caminhadas pelo interior do estado do Pará. Ah! Naquele tempo, tudo era mais difícil para o professor, creio eu. No meu caso, muitas vezes, deixava Belém, onde eu morava, e rumava para algum município do interior, indo de barco ou de ônibus intermunicipal. Raras vezes, peguei avião. Isso acontecia apenas quando ia pra região da Transamazônica ou do sul do Pará. O avião saia de Belém direto pra Altamira. De lá, do aeroporto, íamos, eu e outros colegas professores, de táxi, direto para o ponto das kombis. Essas kombis nos levavam para o município onde iríamos trabalhar, desafiando a estrada escorregadia e lamacenta da Transamazônica. Que experiência incrível! A kombi atolava, deslizava de um lado pra outro, o motorista acelerava pra não atolar, mas atolava. Todos os homens saiam do carro pra ajudar a desatola-lo, apenas as mulheres e crianças ficavam no seu interior. Uma vez, como eu era inexperiente, fiquei atrás da kombi para empurra-la. Quando o motorista acelerou, aquele monte de lama amarela veio pra cima de mim. Tiramos a kombi do atoleiro, mas eu cheguei em Uruará por volta das seis da tarde – tínhamos saído às dez da manhã – com roupa e sapatos todos sujos daquela lama amarela e barrenta, que, no banho, tinha que fazer muito esforço pra tira-la do corpo, dos cabelos, da roupa e dos sapatos também.

       E a bagagem? Ah, a bagagem era outro problema! Eu, particularmente, levava duas: uma com roupas e outra com material de aula: livros, muitos livros, uma resma de papel, estêncil, álcool, canetas, lápis, fitas de vídeo, fitas kassete e, às vezes, até gravador e uma máquina de fotografia. Com os livros, eu reunia a turma em equipes e colocava-os pra fazerem pesquisa, uma vez que, quase sempre, não havia bibliotecas nos lugares pra onde íamos. Os livros também serviam para montar junto com os alunos e alunas, uma sala de leitura, e isso foi feito em alguns municípios carentes, como distrito de Fernandes Belo, também conhecido como Vila Quitéria, e  Açaiteua. Os livros também ajudavam muito na elaboração de seminários e defesa de trabalhos em equipe, fazendo com que alunos e alunas socializassem aquilo que estavam lendo e, com isso, era mais fácil assimilar o conhecimento.

       Naquele tempo, não havia, ainda, o programa do governo federal “Luz para todos” e os municípios do interior do Estado do Pará, quase que inteiramente, pelo menos todos por onde passei, eram iluminados por geradores, que funcionavam a partir das seis horas da tarde e eram desligados por volta das onze horas da noite. Imaginem o sufoco das donas de casa, que tinham que aproveitar esse tempo – de mais ou menos cinco horas de energia elétrica – pra colocar a geladeira pra funcionar e gelar água, fazer gelo, congelar comida pra não estragar, fazer picolé, chope (conhecido também como geladinho), além, é claro, não podemos esquecer, da televisão, da novela das seis da tarde, da novela das oito da noite. Alguns donos de bar tinham seu gerador próprio, outros que não tinham e dependiam dos geradores da cidade, enchiam seus freezers horizontais com gelo, cerveja e refrigerantes pra que a mercadoria não ficasse empatada e pudessem comercializar. Assim era a vida nos interiores do Pará até os fins dos anos noventa, e o professor do SOME conhece toda essa história, todos esses relatos, toda essa fartura de cultura.

       Nós vivemos um tempo que a nova geração, essa, que veio depois de nós, não conheceu, a não ser por livros e fotos, imagens, como se estivessem olhando pra dentro de um museu com peças de antiguidades, de um tempo que se foi. Nós somos as peças antigas, nós somos essas antiguidades, nós somos esse imenso museu arqueológico. Quanta riqueza há em nossas memórias! Memórias vivas, que se mexem! Memórias de tempos incríveis da máquina datilográfica, manual ou elétrica, onde, em dias de aula ou de provas, eu colocava a folha de papel chamex junto com o estêncil, e passava parte das manhãs escrevendo textos e elaborando provas. Aquele barulhinho característico das teclas da máquina quando eu escrevia (tec, tec, tec...), com dedos ágeis das duas mãos, ainda sibila na minha mente, e me enche de nostalgia. Naquele tempo, era comum fazer um curso de datilografia básica pra aprendermos a usar a máquina.

       Quando os textos estavam terminados, era hora de tirar cópias no mimeógrafo, aquele aparelho de cor amarela, que reproduzia cópias a baixo custo e que foi substituído, depois, pela impressora e pela máquina de Xerox, assim como a máquina datilográfica foi substituída pelo computador. E como era o procedimento para uso do Mimeógrafo? Colocava-se o álcool azulado num compartimento interno do aparelho, numa espécie de estufa, preparava-se o estêncil na posição para impressão, arrumava-se o papel sem pauta no mimeógrafo e, então, começava o processo de impressão, rodando a manivela existente ao lado do aparelho. Logo, as folhas de papel iam saindo copiadas. Era assim, naquele tempo. Nem carecia de energia pra máquina datilográfica funcionar, nem pro mimeógrafo. Era tudo muito simples e econômico. Mas tudo foi ficando pra traz, tudo ficou obsoleto: a máquina datilográfica, o estêncil, o mimeógrafo amarelo, o álcool azulado, os geradores, tudo virou peça de museu, guardados como relíquias de um passado do qual, nós, geração de oitenta e noventa, vivenciamos. Essa palavra – obsoleto – não deveria nunca ter sido inventada, pois torna inválido não apenas coisas materiais, mas o próprio ser humano.

       Como não lembrar, também, do telefone fixo, colocado na sala de casa, pra que todos pudessem ouvir quando tocasse? Como não lembrar dos orelhões, das fichas para fazer ligação que, depois, foram substituídas pelos cartões digitais? Como não lembrar das agências da Telepará espalhadas pelo território paraense, onde eu, pelo menos, uma vez por semana, me metia numa fila, esperando a minha vez de telefonar. Antes, tinha que dizer à telefonista, o destino da ligação:

       - Pra Belém!

       E isso tudo, tinha um custo a pagar. “Tempo bom não volta mais, saudade de outros tempos iguais!”, esse slogan era do Lilica, personagem humorístico do programa de televisão “Balança, mas não cai”. Que grande verdade trazem essas palavras. O tempo não volta, nem para, como dizia o Cazuza. Ele segue em frente, e nós tentamos acompanha-lo, mas até onde? Até quando? O tempo não é material nem concreto, nem psicológico. Isso tudo é invenção humana pra satisfazermos a nossa alma, uma tentativa de preenchermos um vazio inexplicável na nossa trajetória nesse mundo. E nós vamos ficando para traz, enquanto o tempo continua avançando e construindo novas histórias.

       Ah, mas essa não deixarei que passe! Ainda há tempo de conta-la, de registra-la na memória das pessoas, pelo menos por algum tempo. Eu estava em Açaiteua, interior de Viseu, com meu amigo professor, que vou chamar aqui de Tós, e a amiga professora, que vou chamar de Aivlis. Era uma sexta-feira, já começando o final de semana e aquela era a última aula da noite. O lugar era bem pequeno e pacato. Havia uma rua principal de chão batido e vermelho, uma escola municipal logo na entrada, uma fila de casas à beira da rua principal, que se prolongava por uns quinhentos metros ou um pouco mais. Quase no final da rua, havia uma pequena praça, e é claro que havia, também, uma igrejinha católica no centro – sempre há – bem em frente à praça, marcando território. Descendo a praça, do outro lado, havia uma escola estadual, com, aproximadamente, quatro salas de aula e uma secretaria, se não me falha a memória. A escola era bem pequena, e funcionava, pela manhã e à tarde, com o ensino básico fundamental, e, à noite, com o ensino médio do sistema modular. A maioria dos professores eram nossos alunos. A escola não parecia ter cores, e, se já tivesse tido algum dia, havia desaparecido com o passar dos anos.

       Do lado da escola, descendo pela rua da pracinha, dobrando a próxima rua que passava por detrás da igreja, estava a casa dos professores, uma casa de madeira, com um pequeno pátio, sala, dois quartos, um banheiro entre os quartos, uma cozinha e um pequeno quintal. A casa era de uma ex-aluna nossa que fora passar um empo em Belém.

       Naquela noite, depois das aulas, noite de sexta-feira, de tênue luar, um luar de quarto crescente, portanto, de uma noite não tão clara, mas também não tão escura, o professor Tós e a professora Aivlis já estavam de malas prontas pra embarcarem no ônibus da Boa Esperança, que passaria, naquela noite, lá por volta de uma hora da manhã. E eles sabiam que não podiam perder aquele ônibus, pois era o único por noite. Se perdessem o coletivo, só no outro dia, ou melhor, só na outra noite. E eles pretendiam aproveitar o final de semana com as suas famílias e voltar pra Açaiteua na segunda-feira pela manhã. A viagem durava em torno de sete horas. Então, deveriam chegar a Belém, por volta de oito da manhã.

       Foram para a beira da estrada, em frente à pracinha, onde ficaram esperando pelo seu transporte. Cerca de uma hora e vinte minutos da madrugada, lá vem o Boa Esperança buzinando alto pra que as pessoas que pretendiam viajar, não perdessem a viagem. Os professores embarcaram e eu voltei pra casa com a lanterna na mão, enquanto a buzina do Boa Esperança ia se distanciando dos meus ouvidos, trazendo calmaria e silencio ao lugar.

       A noite estava linda, muitas estrelas e o quarto crescente flutuando no céu. Esse foi mais um privilégio que tive na minha vida de professor itinerante: ver a noite interiorana com meus próprios olhos, uma noite selvagem e virgem, toda original em sua beleza única, indescritível, que fazia com que a noite parecesse mais enegrecida, uma escuridão que contrastava com o brilho das estrelas, milhares de estrelas a piscar no céu. Uma noite perfeita para casais de namorados, ao som da viola de algum cantador, entoando uma bela serenata.

       Durante a noite, por volta das três da madrugada, ouvi batidas na janela do meu quarto. No início, não liguei, mas, depois, as batidas foram ficando cada vez mais fortes. Eu quis acreditar que era apenas vento forte. Liguei o gravador que estava bem próximo da cabeceira da cama e aumentei um pouco o volume do som. Depois de alguns instantes, nova batida na janela.

       - Bam... Bam...

      Parecia que queriam arrancar as tábuas da janela. Pensei em mil coisas: visagem, ladrão. Mas ladrão não faria todo aquele barulho sabendo que tinha gente na casa. Não, não podia ser ladrão. Então pensei: se não era ladrão e nem vento, só podia ser.... Visagem?

       A casa estava toda na escuridão, pois, como eu disse anteriormente, lá, também, não havia energia elétrica, a não ser um gerador que era ligado das seis da tarde até às onze da noite, tempo suficiente para fechar a escola e professores e funcionários correrem para suas casas, uma vez que as aulas terminavam às dez e meia da noite. No meu quarto havia uma lamparina a querosene que iluminava parte do ambiente, mas a minha imaginação já estava a mil por hora, rodeada de elementos sobrenaturais. Peguei o revolver trinta e oito que levava comigo e o coloquei debaixo do travesseiro. Ao mesmo tempo, aumentei, mais uma vez, o volume da música que tocava no gravador. Lembro-me, claramente, uma das canções que ouvi antes de adormecer. Era a canção Fim de reinado, de Martinho da Vila, que diz assim:

Estás bonita

Nesse alto de colina

Tão feminina

Como a brisa da manhã

Por toda a noite

Dominaste o firmamento

E um punhado de estrelas

Ajudou-te a governar

Mas, eu lamento

Teu reinado já termina

E essa colina

Tá aí pra te abrigar

Vá pra outras terras

Minha formosa Jaci

Ou te escondes atrás da serra

Porque o Rei já vem aí...

       Fiquei nesse sobressalto até quando o dia começou a clarear. Então, não aguentando mais de tanto sono, adormeci. Sobrevivi àquela noite macabra.

       É necessário fazer um parêntese aqui sobre a história do revolver. Acontece que eu, antes de me formar em Letras e Artes, já fazia parte da polícia cientifica, ocupando o cargo de papiloscopista e, quando comecei a dar aulas pelo SOME, nos fins de semana, realizava operação documento (emissão de carteiras de identidade civil) nas localidades em que me encontrava, com carta de autorização do Instituto de Identificação que eu apresentava à autoridade local, quer seja à prefeitura ou à autoridade policial.

       Pois bem, dada essa informação, retornemos à história. No dia seguinte, sábado pela manhã, atualizei alguns textos, corrigi redações e fui ao igarapé que ficava a uns cento e cinquenta metros de casa. Lá, havia alguns banhistas aproveitando o dia ensolarado pra matar o calor.

       O resto do dia foi monótono e solitário, parecendo que corria lentamente com os passos de um bicho preguiça. Aos poucos, a tarde ia se recolhendo, e o rei Guaraci, se despedia de mim, lá, longe, por entre os montes, como se me dissesse:

       - Não se preocupe, não tenha medo, amanhã bem cedinho eu estarei aqui de novo!

       Ainda, por mais alguns momentos, era possível ver a paisagem panorâmica no horizonte. As poéticas imagens que o Guaraci deixava reluzir antes de se esconder por entre as árvores da serra do Piriá. Como não admira-las. Como não se vislumbrar com aquilo que parecia algo sobrenatural. Um tipo de poesia impossível de se descrever, embora eu tenha tentado. Peguei papel e caneta e pus-me a escrever ou descrever a poesia daquele lugar, que me invadia os recantos e os labirintos d’alma. Oh, sim! A poesia está solta, livre na natureza, no mundo real e palpável. Está diante de meus olhos, desnudada, simples e, ao mesmo tempo, humilde e glamorosa. Aquele era o momento, e, ela, parecia que me dizia:

       - Escreva, porque esse momento não tornará a se repetir! O tempo não volta e as coisas envelhecem, perdem o seu vigor e a sua originalidade. Escreva a vida em toda a sua plenitude.

       E eu escrevia e escrevia e escrevia... Finalmente, a noite começou o seu processo de ressurreição, e as imagens da Serra do Piriá, naquela localidade de Açaiteua, já se apagavam, não podiam mais ser vistas. Do batente da casa dos professores, sentado, eu apreciava o nascimento da Jaci, que clareava a noite com suas milhares de súditas, estrelas de todas as formas, com brilhos intensos, umas mais distantes, outras mais próximas, umas maiores, outras menores, e, no meio de todo aquele emaranhado de luzes, tive a impressão de poder vislumbrar as constelações do Cruzeiro do Sul, de Andrômeda, da Ursa Maior, da Ursa Menor, do Cão Maior, do Cão Menor, do Pégaso, da Fénix, de Órion, todas esplendidas. Ah! Eu também vi a famosa Estrela D’alva, a estrelinha dos enfeites de natal que costumávamos construir na escola com cartolina ou isopor e papel laminado, e a pendurávamos na parece da sala de casa. Ela estava ali, com sua cauda imensa, que se arrastava pelo firmamento afora. Uma estrela cadente correu, de repente, cruzando o espaço sideral, e eu fiz um pedido – todo mundo faz – que ficou guardado no íntimo da minh’alma, que se regozijava com a apreciação de toda aquela beleza interplanetária.

       Quantas pessoas não deviam estar fazendo o mesmo que eu, naquele momento, em algum lugar do planeta. Casais deitados na grama do quintal, ou no alto de um monte, amigos, familiares, com telescópio, admirando as belezas da criação divina. Sim, um cenário tão perfeito não pode ter surgido do acaso, pois foi feito de forma organizada, com leis que sustentam os planetas e os astros no vazio do espaço; leis que impedem que nós sejamos puxados para o espaço sideral; leis que fazem com que o planeta gire em volta de si mesmo com uma velocidade em torno de 1666 km/h, e em torno do sol com uma velocidade de 107 mil km/h; leis que retêm o sol fixo, em seu lugar, e que não permitem que ele se aproxime nem se distancie da Terra apenas alguns graus, porque isso, ou aqueceria a Terra demais, ou a esfriaria demais. De qualquer modo, toda vida no planeta morreria. Ah! São as leis físicas que proporcionam esse milagre? Sim, de certa maneira, mas quem criou as leis físicas? Elas não podem ter surgido do acaso. Há que ter um autor, uma mão poderosa, com certeza, que sustenta esse universo. O cristão chama-o pelo nome de Deus. Esse, que é o grande arquiteto do universo, o engenheiro insuperável, o primeiro dos poetas, sublime nas suas criações, que fazem com que os olhares dos poetas humanos, nas suas pinceladas, recriem a poesia que já existia, cujo material, que nos serve de inspiração, foi-nos dado com grande fartura.

       Finalmente, entrei na casa, fechei a porta, fui para a cozinha preparar alguma coisa para comer. Enquanto estava ali, na mesa, me alimentando, podia ouvir o canto das cigarras do lado de fora. Era o único som que chegava a mim. Fora isso, tudo era silêncio, como se tivesse sido decretada uma lei marcial, proibindo qualquer tipo de barulho ou pessoas transitando pelas ruas, após as oito da noite. Instantes depois, tomei um banho e fui ler um pouco. Lia e escrevia. Alguns de meus poemas e contos nasceram em momentos assim, em plena solidão, paz e silêncio. Só eu, a casa dos professores e a natureza. Aquele ambiente me empurrava, automaticamente, em direção ao papel e à caneta. A mente, fértil em imaginação, me inspirava a registrar todo o entorno daquele ambiente, em palavras poéticas, como se sondasse todo o interior de minh’alma, sem que nada pudesse escapar.

       Quem pode descrever o estado d’alma de um poeta? Quem se aventura a dizê-lo? Cada poeta tem o seu próprio caráter e personalidade, a sua história de vida, suas experiências, angústias, frustrações, alegrias, momentos de prazeres, vitórias e derrotas. Já dizia o Fernando Pessoa: “O poeta é um fingidor/Finge tão completamente/que chega a fingir que é dor/A dor que deveras sente”. O poeta, às vezes, sem dar por si, carrega, em seus ombros, as dores e as alegrias do mundo. E por quê? Porque o poeta é um pensador que consegue enxergar no mundo físico o invisível; que consegue ouvir em meio a tanto barulho a canção muda. Um pensador também carrega em si uma desilusão, pois não consegue enxergar no mundo apenas as belas cores do arco-íris, mas enxerga, também, a fotografia em preto e branco, descolorida, sem a beleza da luz. Não como o ser comum enxerga, mas de tal forma que o preto e o branco lhe ferem a alma que há dentro da própria alma.

       A voz de Cecília Meireles também ecoou dizendo: “Eu canto porque o instante existe/E a minha vida está completa/Não sou alegre nem sou triste/Sou poeta”. Que contraste entre forças antagônicas (alegre/triste). Então, o poeta é algo entre a alegria e a tristeza, um pouco de cada ou nada de nada. O instante que existe – pra ela – pode trazer tristeza ou alegria, frustração ou contentamento. É assim com o ser humano. E é assim também com o poeta que, por um instante, pode ter a felicidade em suas mãos, mas no instante seguinte, os sofrimentos do mundo podem arrancar-lhe todo o sorriso do rosto. Então, vivemos de detalhes, de pequenas porções que a vida nos dá. E, no final das contas, temos que ter sabedoria para administra-las. Por conta disso, eu me sinto como um poeta, que, acima de tudo, nunca foi um super-herói invencível, como os das revistas de gibis, nunca deixei de ser humano, e que tenho meus momentos de alegrias e de frustrações, como qualquer outra pessoa, como qualquer um mortal.

       A energia do gerador foi-se embora, tudo ficou escuro, pois Já passavam das dez da noite. Nos finais de semana, quando não tinha aula, o gerador era desligado mais cedo. Peguei imediatamente o fósforo e acendi a lamparina com querosene; a luz voltou; não uma luz forte como a do gerador. Era uma luz tênue que clareava parte do ambiente do quarto, que continha uma cama de solteiro, uma mesinha e um guarda roupa com duas portas. Coloquei a lamparina sobre a mesinha, perto do gravador, e arrumei-me para deitar.

       Adormeci ao som de uma bela música romântica dos anos 90, A beleza da Rosa, de José Ribeiro. Poetas também amam, também ouvem músicas românticas, além da MPB raiz. Naquele tempo, música romântica era música romântica. E parece que as novas gerações de compositores dos anos dois mil e dez pra cá estão perdendo, gradativamente, a inspiração, com exceção, é claro, de alguns bons compositores que fizeram belas canções. Os poetas da música popular brasileira estão morrendo e parece que a qualidade das composições atuais não está sendo reinventada pra melhor. Será que isso é mania de saudosista? Será que é pura nostalgia de quem já passou dos cinquenta e não consegue ver muita beleza nas canções atuais? Música tem que conter poesia, poesia tem que conter musicalidade, como nas canções de gesta de Provença e do trovadorismo português.

       Eu fico falando e narrando coisas, e me pego viajando por idos da Idade Média, por castelos de Notinghan e pelas florestas de Robin Hood. Tenho que voltar ao presente. É preciso. Se não, como esta história se encerrará? Pois bem, voltemos ao presente. Num determinado momento, nem sei se estava acordado ou sonhando. Sei que ouvi batidas que vinham da porta uma, duas, três vezes, com insistência. As batidas pareciam distantes, mas ficavam cada vez mais fortes:

       - Toc-toc-toc... Toc-toc-toc...

    Despertei, de repente, num salto. Olhei o relógio. Eram Uma e meia da madrugada. Ouvi barulho de motor de carro lá fora e as batidas insistentes na porta. Saí do quarto e fui para a sala. Perguntei quem era. Nenhuma resposta. Perguntei novamente. Nenhuma resposta. Completo silêncio. Quando bateram novamente, eu prontamente respondi:

       - Se não dizer quem é eu vou atirar! – Eu estava com o trinta e oito na mão, pois, até então, eu não tinha a mínima ideia de quem poderia bater à minha porta àquela hora da madruga. Não me vinha ninguém à mente. O professor Tós e a professora Aivlis estavam em Belém e só iriam chegar em Açaiteua por volta das duas da tarde de segunda-feira. Na localidade, eu não conhecia ninguém que tivesse tamanha intimidade de bater na minha porta àquela hora da madrugada.

       De repente, ouvi alguém dizer lá fora, parecia a voz do condutor do veículo:

      - É melhor a senhora falar logo quem é. Ele disse que tá armado e pode atirar. É perigoso.

      Aí, então, ouvi uma voz conhecida:

- Sou eu, Emos! A Zete!

- Zete? O que estás fazendo aqui a essa hora da manhã?

- Abre a porta, depois te conto!

       Abri a porta e ela entrou. Era a minha esposa que tinha ido pra Açaiteua com meu filho, o pequeno Biel, a fim de me fazer uma surpresa. Passado o susto e as explicações, fomos, finalmente, dormir. Confesso que foi uma bela surpresa. Não me senti mais tão só, nem me preocupei mais com os fantasmas e visagens que rondavam aquela casa, querendo me assombrar.

       A minha esposa ainda me surpreenderia muitas outras vezes, com sua chegada inesperada em outras localidades do Marajó, da Pará-Maranhão, da Transamazônica. Essas são outras linhas e outros papéis em branco pra serem escritos, porque essa história não termina aqui. A história de cada um de nós nunca termina, enquanto houver chão pra pisar.


*O autor do texto é escritor, poeta e ex professor do Sistema de Organização Modular de Ensino - SOME(SEDUC/PA).

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

O ANJINHO DE AÇAITEUA

 


Sabe! Nessas minhas andanças pelo interior do estado do Pará como professor do modular – Modular não! “SOME”, que quer dizer Sistema de Organização Modular de Ensino – eu já me deparei com as mais variadas situações. Situações essas, por vezes alegres, outras vezes tristes, inusitadas, inesperadas, mas também, às vezes, esperadas. E essa que eu vou compartilhar com vocês foi realmente uma situação inesperada e triste, muito triste.


Não sei se conseguiria estender o significado da palavra “triste” pra você que me lê agora, nesse instante. A palavra parece adquirir um sentido abstrato, mas o sentimento é concreto, e de toneladas de concreto. Tristeza nunca foi sinônimo de felicidade, de alegria, pois ela está presente na separação, na despedida, na morte. Sim, na morte, essa palavra que tentamos evitar e até esquecer, porque ela representa o “nunca mais”. Imagine nunca mais ver o rosto de alguém que tanto amas! Nunca mais ouvir suas gargalhadas, seus conselhos, suas piadas; alguém que era a sua companhia do dia-a-dia, pau pra toda obra... E, de repente, você nunca mais irá tê-la ao seu lado. Imaginou?

 

Quando contamos a história de alguém que passou pela tragédia da morte, é humanamente impossível descrever sua dor, porque a dor é dele, está no seu íntimo, e nós, como seres humanos, parece que estamos desaprendendo princípios básicos da raça humana, como: a emoção, o amor ao próximo, a fraternidade, a solidariedade, o querer o bem do outro. Parece que nos tornamos personagens como que do filme “O exterminador do futuro”, cujos robôs, avançados em tecnologia, pretendem aniquilar a raça humana. Mas, pasmem, que, até ali, um robô teve uma escolha. Ele aprendeu, em contato com um menino, o significado de “amizade”, “lealdade”, “família”. Parece que o filme está querendo lembrar a gente de alguma coisa que, talvez, tenhamos esquecido num passado recente.

 

Bem, você percebeu que eu falei, falei e falei e não consegui passar o sentimento que eu quero expressar: tristeza, pesar. Isso porque a tristeza falada, não é a mesma tristeza vivida. Mas, quem sabe, ao se apoderar do enredo da história, você consiga se emocionar; quem sabe até uma lágrima incontida escorregue pelo seu rosto. Aí eu começo a acreditar mais no ser humano, como ser humano.

 

Era exatamente o ano de 1993. Eu e minha colega de equipe, a professora Mara, fomos enviados para o distrito de Açaiteua, no interior de Viseu. Sim, Viseu de Quintino da Silva Lira, o gatilheiro Quintino, também chamado de “o Robin Hood da Amazônia”, pois ele foi o líder de um movimento armado contra a mineradora CIDAPAR, quando esta foi autorizada pelo governo do estado, em conjunto com o governo federal, a explorar uma área na região nordeste do Pará, em fins dos anos 1970, em pleno regime militar, desapropriada pelo governo estadual. Ele e mais cem homens resistiram à desapropriação por três anos e, após a mineradora contabilizar derrota após derrota, desistiu do projeto de exploração e devolveu as terras aos posseiros, seus legítimos donos. Foi uma vitória, não há dúvida, mas Quintino não iria usufruir do privilégio de voltar às suas terras e ali morar, e viver em paz. Em pouco tempo, seu nome passou a fazer parte da lista de homens assassinados por questão de terra no Brasil. Foi morto pelas forças de segurança do Estado do Pará, pela polícia paraense, sob as ordens governo paraense, no dia 4 de janeiro de 1985. Pra não haver tumulto nem tentativa de rebelião pelos seus companheiros, teve seu corpo enterrado a 180 km distantes de sua comunidade. Mas os amigos de luta foram em busca de seu corpo e o carregaram num cortejo fúnebre pelos vários povoados, como uma justa homenagem àquele que enfrentou grandes latifundiários e a empresa mineradora CIDAPAR.

 

Sim, fomos pra Açaiteua, um pequeno distrito afastado de Viseu. A viagem era longa e cansativa. O ônibus da Boa Esperança saia do terminal rodoviário de Belém por volta das 9 horas da manhã e chegávamos ao município de Bragança lá pelas 13 horas. Ali, embarcavam algumas pessoas que iam pra Açaiteua e povoados próximos. Homens, mulheres, crianças, pessoas idosas, o ônibus ficava lotado com gente viajando em pé. Embarcavam também, sacas de farinha e mantimentos diversos. Acontecia de tudo numa viagem dessas. Era vendedor que entrava pra vender picolé, chope de frutas, rosquinha, bolinho, pamonha, salgadinho, água, refrigerante, enfim, cada um tentando sobreviver do jeito que dava.

 

Um dia, numa viagem dessas, em outro momento, com uma outra equipe, viajando com a professora Marli que ministrava as disciplinas Língua Portuguesa e Língua Inglesa, eu sentei no lado do corredor e a professora Marli ao lado da janela. Um garotinho havia comido tanta besteira que, quando o ônibus começou a sacolejar, ele sentiu enjoo e a mãe tratou de colocar a cabeça dele pro lado de fora da janela, e ele vomitou, vomitou e vomitou, parecia que ia colocar as tripas pra fora, enquanto a mãe passava as mãos nas costas do garoto, como que se, assim, pudesse fazer passar o mal estar. O vento, provocado pela velocidade do ônibus em movimento, jogou o vômito direto na janela da professora Marli, sujando seu braço e parte do ombro. É claro que ela ficou indignada, reclamou muito, mas o máximo que pôde fazer foi puxar um lenço e tratar de se limpar, pois o ônibus estava lotado e, devido à hora, fazia muito calor e a poeira alaranjada, levantada na estrada de piçarra, tornava a viagem bastante desconfortável. Assim, todo mundo só pensava em chegar logo em seu destino.

 

Voltando à viagem com a professora Mara, depois que saímos de Bragança rumo a Açaiteua, o relógio já contava Uma hora e trinta e cinco minutos da tarde de um sol escaldante. Essa viagem foi relativamente tranquila. Chegamos ao distrito de Açaiteua lá pelas três e meia da tarde. O lugar era bem simples, um pequeno povoado com uma rua principal de piçarra, uma escola municipal pintada de um azul claro logo na entrada da localidade, com algumas salas de aula e um terreno espaçoso dentro dos seus limites. Havia casas de um lado e de outro, casas simples com pessoas simples. Já quase no final da rua principal, podia-se avistar a única pracinha do lugar, com uma igrejinha católica tomando conta do cenário, cujo padre – assim eu soube depois – raramente aparecia para celebrar uma missa. Desembarcamos ali, naquele ponto, bem em frente àquela pracinha, donde pude avistar, do outro lado dela, uma pequena escola estadual com, no máximo, quatro salas de aula. Percebi que, ali, seria o nosso local de trabalho por dois meses.

 

Pegamos nossa bagagem e perguntamos para alguns moradores que passavam onde morava a professora Dária. Imediatamente apontaram para uma casa no final da praça, que dava para o lado da igreja. Descemos a rua e chegamos a casa, batemos palmas e logo alguém veio atender. Era a professora Dária, que nos recebeu com muita cordialidade. Estava já nos esperando junto com o Balão, vice-prefeito de Viseu, que nos colocou a par das dificuldades que a prefeitura estava enfrentado para o funcionamento do Sistema Modular em seus distritos. Explicou-nos que, provisoriamente, iríamos morar na casa da professora Dária, já que não disponibilizavam ainda de uma casa própria que abrigasse os professores. Naquele momento, ficamos sabendo que não havia casa para os professores; que teríamos que conviver diariamente com a família da professora Dária; que não teríamos privacidade nem local adequado para colocar os materiais de aula, livros, estêncil, álcool, nem ambiente para preparar aulas ou receber alunos, e que a Professora Mara iria ocupar um quarto e eu iria dormir em uma rede num canto perto da sala.

 

Tudo bem, tiramos de letra. Conhecemos o pai da Dária, chamado por todos como seu Biléu, homem de uns setenta anos, alto, acostumado com o trabalho duro da roça, homem simples, de poucas palavras. Um dia, tomou um porre de cachaça e saiu com o terçado na mão lambando tudo que encontrava pela frente, querendo dar uma coça em visagem. E, assim, entre uma emoção e outra, os dias foram passando, talvez mais rápido do que poderíamos imaginar.

 

Um dia, lembro bem, eram por volta das cinco da manhã quando alguém bateu à porta da casa insistentemente. Todos acordaram e estranharam também, devido ainda ser madrugada. O ditado popular diz que quando você recebe telefonema tarde da noite é porque algo sério aconteceu e a notícia não é boa. A professora Dária correu para a porta já demonstrando preocupação com o que poderia ser e quem estaria batendo à porta da sua casa àquela hora da noite. Ao abri-la, deparou-se com uma garotinha, filha da sua comadre, que eu vou chamar pelo nome fictício de Aninha. Abro um parêntese aqui para explicar que alguns nomes são fictícios, uma vez que este fato aconteceu a vinte e oito anos, e alguns nomes reais foram esquecidos. Dária olhou para Aninha e perguntou o que estava acontecendo. A menina foi logo falando que a mãe pediu pra chamar sua comadre porque a filha mais nova estava muito doente.

 

Saímos todos pra casa da comadre de Dária, a quem vou chamar de Célia. Chegando lá, reparei no cenário estampado diante de nossos olhos: uma mãe, ainda com os cabelos desarrumados, um rosto marcado pelo sofrimento e desespero, sentada, numa cadeira de embalo, com a pequena filha no colo, levantada até o peito, como se quisesse protege-la, guarda-la da dor, da doença, da presença da morte. As lágrimas incontidas daquela mãe quebrantavam os corações dos amigos e vizinhos presentes, que pareciam paralisados sem saber o que fazer. Triste, muito triste era ver o desespero do pai que dava voltas na sala, de um lado pra outro, completamente desnorteado.

 

Dária perguntou a sua comadre o que tinha acontecido e ela respondeu que a menina estava com febre desde as primeiras horas da noite, mas depois foi piorando e, já pela madrugada a menina não reagia, estava completamente mole. O genro de Célia, que era uma espécie de curandeiro da comunidade, pois ele costumava tratar as pessoas doentes com plantas medicinais, achava que era meningite. Ele até que fez algumas tentativas de tratar a menina com remédios caseiros, mas não obteve resultado positivo e a menina continuou piorando.

 

A situação foi ficando mais tensa, mais desesperadora e, num determinado instante, algumas pessoas recomendaram que o pai levasse com urgência a filha até o hospital mais próximo, que ficava em Bragança. O pai, sem entender direito o que estava acontecendo com sua filha, porque ela, de uma hora pra outra, adoeceu tão rápido e ficou tão mal de saúde, dava voltas na sala, dizendo em voz alta que, se levasse a filha pra Bragança e ela chegasse morta ou morresse lá, ele não iria deixar que a cortassem pra fazer perícia. Ele olhava pra ela e dizia que a filha estava morrendo, que ela não ia aguentar uma viagem até Bragança. Nessas horas é que vemos o quanto a nossa gente do interior está desassistida; o quanto políticas públicas sérias, feitas por pessoas sérias, são tão importantes e podem salvar vidas.

 

Amanhecia o dia, o galo cantava. Na casa de Célia, grande alvoroço, com gente entrando e saindo. Eu e Mara, ali, inertes, sem saber o que fazer ou dizer. De repente, Célia solta um grito angustiado dizendo que sua filha havia morrido, ela não se mexia mais, a respiração foi ficando cada vez mais fraca, até não se ouvir mais nada. O pai correu e pegou a menina, e colocou-a no colo, enquanto gritava: “Minha filha! Minha filha!” Foi um momento muito triste. A criança morreu e ninguém pôde fazer nada. Se era meningite, naquele momento, não tínhamos como saber; pelo menos oficialmente não, mas tudo levava a crer que era.

 

A criança foi enterrada ali, no pequeno cemitério de Açaiteua, perto de seus pais, de seus parentes, na sua terra, na terra em que havia nascido; ali nasceu, ali morreu como um anjinho. Pouco tempo depois, eu e a professora Mara terminamos as nossas atividades naquele lugar. Os dias eram de luto que convidavam para uma profunda reflexão sobre o que realmente importa na vida, o que realmente tem valor para nós, seres humanos. Deixamos a localidade com muitas lembranças boas, conhecemos pessoas, fizemos amizades, mas também levamos conosco algumas lembranças tristes, como a morte daquele anjinho.

 

Uma hora da madrugada estávamos lá, na beira da estrada, a rua central de Açaiteua, esperando o ônibus da Boa Esperança que ia para Belém. Aquele era o único horário e o único ônibus. Não podíamos perdê-lo; se isso acontecesse, só no outro dia, na mesma hora. A noite revelava muitas estrelas suspensas, e o quarto crescente da lua, clareava parcialmente a escuridão que nos rodeava. Ninguém pra se despedir, todos dormiam, enquanto pegávamos o ônibus e partíamos dali. O amanhecer traria um novo dia. Desconhecido, sim! Mais um novo dia.


 

Prof. Carlos Alberto Prestes

(Licenciado pleno em Letras e Pedagogia, pós-graduado em Literatura e suas Interfaces)

Ex-professor do SOME

(Língua Portuguesa, Literatura e Redação)


quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Eletricidade e Calor: A Física presente na vida cotidiana dos alunos do SOME







Com esse tema, foi apresentado ontem, na XXXIII Feira do Livro sob coordenação do Professor do Sistema de Organização Modular de Ensino - SOME, Robson Lopes Moreira, apoio dos discentes Ana Carolina Gonçalves Silva, Henrique Pereira da Silva e Sângela Castro Félix e participação efetiva dos alunos da Vila de Curupaiti, do município de Viseu, pertencente a 1ª Unidade Regional de Ensino - URE de Bragança.







A atividade pedagógica foi  concorrida durante as duas horas de apresentação: 14 às 16 hrs. Os visitantes do Stand da Secretaria Estadual de Educação - SEDUC, local da apresentação sentiram-se animados e alegres com as excelentes explicações dos expositores sobre o tema.





Uma atividade produtiva e prazerosa para os alunos que estiveram envolvidos, que com certeza vai marcar a vida deles com essa exposição.






Parabenizo todos que participaram do processo de construção e apoiaram com incentivo importante para melhoria da educação do Sistema de Organização Modular de Ensino - SOME.






O credito das imagens marcantes que marcaram o SOME na XXXIII Feira do Livro são dos professores presentes. 


























quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Consciência Negra em Viseu, Pará





Ontem, no Brasil, considerado Dia da Consciência Negra, em homenagem ao Zumbi dos Palmares, sendo o último dos lideres do Quilombo dos Palmares, que ficava localizado no estado de Alagoas e foi educado por um sacerdote. Se destacou como um grande combatente, em defesa de seu território. Por ser um guerreiro feroz contra os colonizadores, durante o período colonial, foi assassinado pelo capitão Furtado de Mendonça , subordinado de Domingo Jorge Velho, no ano de 1695.Para servir de exemplo para os outros negros, foi decapitado e sua cabeça levada para Recife onde ficou exposta em praça pública. 








No Brasil, diversas atividades foram programadas pelo movimento negro, pelas escolas particulares e públicas, entre elas, na comunidades de Curupaiti, no município de Viseu, no estado do Pará.








No evento, de ontem, o projeto foi executado pela comunidade escolar, envolvendo todo o corpo docente, tanto do fundamental quanto do ensino médio; além  dos servidores de apoio e aluno(a)s das duas modalidades de ensino. 







A programação foi intensa, com participação efetiva de todas as categorias da escolas, além de membros da comunidade que proporcionaram através da linguagem da fotografia, teatro, música, roda de capoeira, apresentações e alimentação tipica ao evento, um sucesso total.





Os educadores do Sistema de Organização Modular de Ensino - SOME, que participaram do evento foram: Edilberto Santos (Matemática/Física), Adriano Mesquita (História), Linvaldo Gaspar (História), Vânia Silva (História), Rui Bronze (Geografia), Maria Barros (Geografia) e Aimee Silva (Inglês).







O Blog do Riba parabeniza esses verdadeiros guerreiros, que trabalham nos rincões do Estado, que retrataram através de uma atividade pedagógica produtiva, uma parte da História do Brasil.